Os místicos contemplavam um verme e percebiam que na questão da existência não tem sentido qualquer hierarquia na cadeia evolutiva. O verme, mesmo com sua falta de sofisticação diante da complexidade de um humano, ainda assim pode ser capaz de se fazer verme melhor do que o homem pode se fazer homem. Esse cumprir de si é tão legítimo quanto for capaz de produzir bem-estar, independentemente de qualquer hierarquia biológica. Cumprir-se e apropriar-se determina a qualidade do ser.
Ter ou Não Ter, Eis a questão!
Nilton Bonder
Editora Campus
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No texto que publiquei com o título VIM VI E NÃO VENCI [link abaixo], recebi comentários positivos e agradeço a presença de todos os leitores.
https://espiritismosec21.blogspot.com/2025/05/vim-vi-e-nao-venci.html?m=1
Um dos comentários me chamou a atenção, onde fala da superação de nossas imperfeições. O autor se alinha perfeitamente com as bases da Doutrina Espírita. Isso é muito louvável.
Segue abaixo o comentário:
Excelente reflexão. Penso que a vitória está sobre nós mesmos. No bom combate contra nossas imperfeições morais. Grande abraço!
É claro que me alegro com o elogio e o abraço do valoroso irmão. Contudo, vejo um problema que vem dos termos utilizados, naturalmente, pela Doutrina Espírita.
A meu ver, há problema nesta expressão:
No bom combate contra nossas imperfeições morais.
Se, de fato, fossem “imperfeições”, esse combate seria inútil, porque as imperfeições, como já disse um sábio: o pecado [leia-se imperfeição] somos nós. Não é algo que adere à nossa alma, porque é inerente, ou seja, não é algo que posso tirar de mim, porque faz parte da arquitetura do meu ser.
Outra coisa: o termo “combate”. Quanto mais queremos combater as nossas pulsões, mais e mais elas se fortalecem, se potencializam. Portanto, não é esse o melhor caminho. Nesta luta, que muitos empreendem, não raro, resulta em cansaço, tristeza e depressão.
O
caminho é o da atenção o mais interessada possível dos movimentos dessas “imperfeições”
em nossa vida de relação e conosco mesmos. É buscar compreender o que nos
motiva a agir assim ou assado. Essa disposição interessada chama-se “prontidão
de espírito”[1].
E qual é o impedimento para empreendermos essa observação? É o de vivermos distraídos e desinteressados. E não se trata de um julgamento moral, trata-se de uma característica comportamental no mundo atual que nos atravessa.
Outro problema: é o termo “imperfeição”. Essa ideia depreciativa e autoacusatória já foi tratada por Nietzsche, que a chamou de “moral dos escravos”. Não quero ser tão contundente quanto o filósofo alemão conhecido por filosofar com o martelo, mas vou por outro caminho:
Se Deus é o Criador de todas as coisas, ele não pode exigir que uma lagartixa funcione como um jacaré. Ele sabe que cada um ocupa um lugar na cadeia da vida. Assim também com o homem.
Não
podemos exigir que uma criança que acaba de aprender o alfabeto, saiba ler e
interpretar Hegel[2].
Chamar essa incapacidade de “imperfeição” não é adequada.
Para a visão divina não se trata de “imperfeições”, mas de um processo de atualização mais ou menos desenvolvida em cada indivíduo.
E o que é atualização?
O
grande filósofo grego Aristóteles, criou o termo “enteléquia”: um movimento
orientado em que algo que estava em potência se tornou ato (daí o termo “atualização”).
Um
exemplo de enteléquia é o abacateiro. O abacateiro é a enteléquia do caroço de
abacate. O caroço possuía um abacateiro dentro de si, mas em potência. Ao se
transformar em abacateiro, aquela potência atualizou-se, ou seja, tornou-se
Ato.
Outro exemplo bacana esta na pergunta: quem duvida que numa semente de laranja haja um laranjal? A semente é, em potência, o laranjal; e este é a semente que se atualizou. O processo em que se dá essa mudança de semente para pomar é a enteléquia.
Daí, na linguagem do grande filósofo grego Deus é Ato Puro. E como Ato Puro, não pode “enxergar” imperfeições em nós – o que equivaleria a um juízo moral deprimente, Ele “vê” potências que vão se atualizando ao longo da jornada do espírito.
Volto a uma citação da sabedoria judaica colocada no início deste texto: temos de nos apropriar de nós mesmos apesar do abismo que nos separa dos anjos.[3]
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Prontidão do espírito" pode ser entendida como a disposição ou
capacidade de um indivíduo estar aberto a novas experiências, a mudanças e a
desafios, com um espírito resiliente e adaptável. É estar pronto para
agir, reagir e evoluir diante das situações que a vida apresenta.
[2] Georg Wilhelm Friedrich Hegel [1770-1831] foi um filósofo
alemão. Considerado por muitos como autor difícil de ser lido. Sua obra Fenomenologia
do Espírito é obra densa, com linguagem abstrata.
[3] Faço referência a Nietzsche que disse em seu “Assim falava Zaratustra”:
O homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem — uma corda
sobre um abismo.”
Seu texto propõe uma inversão poderosa: em vez de lutar contra o que chamamos de "imperfeições", convida à atenção generosa ao que somos em processo de nos tornar. É uma visão mais compassiva e orgânica da existência, na qual não há lugar para a autodepreciação moral, mas sim para a atualização contínua daquilo que já está em nós, em potência. Como você bem sugere, talvez o verdadeiro “bom combate” não seja contra nós mesmos, mas por uma escuta mais honesta e interessada da nossa própria trajetória de ser.
ResponderExcluirCombater "imperfeições" nunca fez sentido para mim. Prefiro observar meus comportamentos e entender o que me move e, inclusive, aceitar uma certa dissociação da realidade, sem tropeçar em um CID. Hehehe. Abraços afetuosos.
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