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Mostrando postagens de dezembro, 2019

ANO NOVO, VIDA VELHA por Ubiratan Rosa [parte 4]

Qualquer conceito pelo qual o pensamento se identifica como Eu, Meu, Nosso, é essencialmente mau, separa, divide as criaturas, torna-as sumamente hostis umas para com as outras. Por amor da Pátria, da Família, da Crença, aborrecemos e odiamos o outro, o estrangeiro, o vizinho, o que não é confrade, e isto é um contra-senso, uma aberração: não podem coabitar o amor e o ódio num mesmo coração. Se coabitam, cumpre conhecê-los bem, talvez não sejam, seguramente não são, como pensamos, amor e ódio, mas coisas diferentes. Meu amor da Pátria pode ser (e na verdade é) um puro egocentrismo, um apego doentio a mim mesmo; meu ódio ao outro, o grande medo que tenho da fragilidade da noção de Pátria, com que busco me fortalecer. Ocorre o mesmo quanto às crenças ditas religiosas. Faço proselitismo, quero que todos professem o que professo, aceitem o deus ou o mistério que aceitei, porque, no consenso dos outros, me fortaleço, e na sua dissidência ou negação, me enfraqueço. Mas é precisamen

ANO NOVO, VIDA VELHA por Ubiratan Rosa [parte 3]

Ora, se até aqui tenho sido infeliz com o conhecido, diz-me a razão que desta infelicidade só me poderei libertar pelo desconhecido. Mas este, o desconhecido, não pode ser um objetivo, uma meta por atingir, uma motivação, porque motivações, objetivos, metas, só se podem estabelecer em relação ao conhecido. O desconhecido é o novo, que se patenteia quando o conhecido desaparece. Mas não se deve tomar à letra esse "desaparece", que aqui fica como força de expressão. O "conhecido" são os conceitos que aceitei e elaborei, ou reelaborei, pelos quais norteio minha vida. Integram minha cultura, minha memória, são pensamentos. Não podem, então, "desaparecer", porque o pensamento é indelével (que não se pode delir; que não se dissipa; indestrutível; inapagável). Não só o "pensamento discursivo" (que inclui o raciocínio, a dedução, a demonstração), mas também o pensamento-emoção (que inclui o que se sente). Tudo o que se pensa, tudo o que se o

ANO NOVO, VIDA VELHA por Ubiratan Rosa [parte 2]

Se você nunca foi rico, como sabe que o rico "vive melhor"? Ele pode ostentar fausto e pompa, mas este luxo não é garantia de vida melhor (aceitando-se, por um momento breve, a estupidez da comparação). "Ele come melhor, bebe melhor, mora melhor, dorme melhor que o pobre. Isto não é inegável?" É inegável. Mas ele pensa melhor, sente melhor, ama melhor? (1) A vida é um processo global. Toda hipertrofia é uma fragmentação, e toda fragmentação, conflito. "O que se entende por hipertrofia?" Um inchaço, uma exageração, ou exacerbação, uma expansão em determinado sentido, em sentido unilateral. Se levo a vida rezando, em detrimento de tudo o mais, fragmentei-me na devoção, nela me hipertrofiei; há os que se fragmentam no trabalho, na bebida, no sexo. A hipertrofia de uma parte causa a atrofia do todo. Muito rico, ou muito pobre, o sujeito embota-se, perde a sensibilidade quanto ao todo. Mas se a si mesmo conhece, anula o conceito de riq

ANO NOVO, VIDA VELHA por Ubiratan Rosa [parte 1]

Por ocasião da passagem do ano, quero oferecer este texto de Ubiratan Rosa para nossa reflexão. Como se trata de um texto mais longo decidi publicá-lo em partes. Espero, sinceramente, que este ensaio do Ubiratan sirva de abertura do pensamento para novos horizontes. O texto faz parte de uma coletânea de ensaios chamada "Mais Treva do que Luz e outros ensaios", Lince Reprografia e Editora Ltda, 1989. Boa leitura. ANO NOVO, VIDA VELHA                                                                        Os dados do condicionamento psicológico, centrados nos conceitos, não desaparecem; mas desativam-se.             Por ocasião das festas de fim de ano são comuns os votos de novidade para o ano que se inicia: "Ano Novo, vida nova!" Mas a vida continua sempre velha, porque não nos renovamos. Teríamos de ter, não só um ano novo, porém um mês novo, uma nova semana, feita de novos dias, porque integrada por horas novas, novos minutos e segundos novo

PAUSA PARA OUVIR - Satie

Éric Alfred Leslie Satie (17/05/1866-01/07/1925) https://www.youtube.com/watch?v=b9WKC5sT9Z4

NATAL por Rubem Alves

A caixa de sapatos: Era o dia 25 de dezembro. Na noite da véspera, Papai Noel havia visitado as crianças da vizinhança deixando para cada uma delas um presente. Eram presentes simples. Uma bola. Uma boneca comprada em loja, de celulóide, material antepassado do plástico. Uma boneca de pano que alguém fizera em segredo. Um caminhãozinho de madeira que se comprava na cadeia. Os presos, sem ter o que fazer, transformavam-se em fabricantes de brinquedos. Sim, parecia que Papai Noel visitara todas as crianças da redondeza. E todos os meninos e meninas saíam à rua, exibindo a sua alegria. Menos o Vinícius, menino de 6 anos, meu vizinho. Papai Noel se esquecera dele. Ele estava muito longe, entregue a amores de capital. O Vinícius, então, apareceu puxando o presente que ele mesmo fizera: uma caixa de sapato, amarrada a um barbante. O Natal me deixa triste. Porque, por mais que o procure, não o encontro. Natal é uma celebração. As celebrações acontecem para trazer do esquecimento uma coi

NATAL ÁS AVESSAS

Para mim o Cristo não é Jesus. Jesus foi um grande mestre que por sua grandeza e lucidez dividiu a história do Ocidente ao meio (antes e depois dele). Enquanto o Cristo simboliza uma entidade cósmica que todos nós possuímos que dormita em nossa essência. É um universo de possibilidades. Daí a diferença entre Jesus e nós: como na enteléquia de Aristóteles [1] , nele – Jesus - o Cristo era ato, enquanto em nós é potência. Muita gente - muita gente mesmo! - aguarda o final do ano para celebrar o nascimento de Jesus em reuniões de amigos, familiares e afins. De quebra, torce para que as bolinhas sorteadas coincidam com os números marcados no volante da loteria. Não são poucas as pessoas que seguram o bilhete entre as mãos pedindo aos céus que lhes conceda a graça da riqueza e a suposta felicidade decorrente da posse de alguns milhões. Como não sou besta, também faço minha “fezinha”, porém não ligo muito se não ganhar. Já sou rico. Meu tesouro a ferrugem não corrói, e ladrão algum

PAUSA PARA OUVIR - Lizst 2

FRANZ LISZT (22/10/1811-31/07/1886) Au lac de Wallenstadt