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CORONAVÍRUS E A TRANSIÇÃO PLANETÁRIA


Depois da espanhola[1] e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão.
A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia.
Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 13/04/2020

Por mais hedionda seja a figura de Joseph Goebbels[2] recentemente foi elevada ao status de máxima da sabedoria sua frase: “uma mentira contada muitas vezes acaba se tornando uma verdade”. É óbvio que se trata de uma armadilha, de um sofisma. No entanto, é plausível que se pense no poder dessa frase considerando como uma verdade baseando-se na receptividade do senso comum,  independentemente de cairmos no paradoxo de Eubulides ou de Epimênides[3].

Há um insistente discurso de que esse momento da história marca o início de um processo global que convencionou-se chamar de “transição planetária”. Essa ideia não é nova, aqui no Ocidente vem de um conjunto de crenças judaico-cristãs . A ideia de “fim de mundo” – esse fim pode representar tanto o fim em si como o fim do modelo de mundo em que vivemos – foi sentida por diversas gerações anteriores[4]. O fim em si com a ameaça de uma guerra nuclear global (ameaça que ainda perdura pela quantidade de ogivas guardadas “por precaução”, e o fim do modelo com a aproximação de cometas e outros corpos celestes atribuídos aos sinais da divindade para corrigir a humanidade de seus pecados.

Para o Judaísmo seria marcado pela vinda do Messias – até hoje os judeus esperam por esta vinda uma vez que não reconhecem Jesus como tal, embora o considerem um profeta.

Para o Cristianismo, a base vem da volta prometida por Jesus onde os bons e maus serão julgados – o Juízo Final. “Final” porque segundo a tradição cristã, os justos serão recompensados pela instalação do Reino de Deus na Terra. Para mim, um pouco complicado de entender, porque se Jesus diz em Lucas que o Reino de Deus não vem por aparências exteriores, mas que se manifesta dentro de nós, ou seja, algo subjetivo; então, como ocorrerá esse nocaute da subjetividade, ou seja, a concorrência de uma instância interna em algo objetivo – a Terra, o imanente?

Pode-se argumentar que a mudança dos padrões subjetivos resultaria na transformação das coisas objetivamente. Certo, também concordo, mas não por meio de uma hecatombe ou pela decisão de um Ser que, de repente, decide fazer a coisa funcionar pela sua Vontade e pela ação de anjos enviados sem a participação efetiva, lenta e gradativa de todos nós; acho muito difícil operacionalizar esse projeto - esse é um dos meus argumentos. Uma mudança dessa magnitude e de fundo ético e moral não pode ocorrer por um choque mecânico, um passe de mágica, um forçamento, mas por meio da vontade e da ação humana tendo a Educação como ferramenta poderosa.
Kardec desenvolve essa ideia de transição planetária calcada numa das bases de sua Doutrina – a evolução; vale dizer que a atualizou segundo a visão cientificista característica do século XIX. Ele acreditava que os mundos evoluem (aqui significando melhora moral) e que o Espiritismo (leia-se Doutrina Espírita) traria as ferramentas necessárias e suficientes para a implantação daquele projeto Divino de melhoramento das condições de vida no planeta. É bom frisar que Kardec acreditava firmemente nessa evolução não só da Humanidade, mas também do planeta em si – algo relacionado com o que, posteriormente, de forma mais sofisticada,  James E. Lovelock chamou de “Hipótese de Gaia”.

Muitos espíritas insistem em acreditar nessa mágica divina, ou seja, o “castigo” que estamos recebendo por conta da pandemia do Covid-19 é um sinal daquela transição – no caso uma tese algo esquizofrênica na qual a Terra passará de “planeta de provas e expiações” para um “planeta de regeneração” segundo a classificação adotada por Allan Kardec.
Em meu ponto de vista trata-se, na melhor das hipóteses, de uma distração intelectual para compensar as mazelas da ação humana no ambiente com o consequente rastro de destruição para as gerações posteriores.

Por outro ponto de vista, agora psicanalítico, trata-se do ressentimento daqueles que apregoam a transição com muita pompa e circunstância, porque se excluem -  de forma inconsciente -  do processo de banimento do planeta pós-transição – uma forma narcísica de compensar todo o gozo reprimido o qual os degenerados descrentes gozaram sem fazer economia alguma os quais serão degredados para planetas inferiores para purgar os seus pecados.

Também, pode ser o resultado do grande sentimento mágico acumulado por lideres religiosos que influenciam uma multidão de seres desesperados diante da crua realidade que bate às nossas portas sem nenhuma consideração pelos seus clamores aos céus.[5]

O fato é que, diante dessa pandemia, temos pratos para todos os gostos: antivacinistas, terraplanistas, conspiracionistas, apocalípticos e congêneres, videntes, cloroquinistas, religiosos que apregoam que o vírus é obra de Satanás.
Diante do exposto, temos duas alternativas:

        Deixar que a Ciência resolva, com seus métodos, os problemas desse tipo ;
        ou acreditar que o sangue de barata tem o poder[6].





[1] Referência à gripe espanhola que assolou o mundo no início do século 20.
[2] Paul Joseph Goebbels foi um político alemão e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945.
[3] Epimênides foi um poeta, filósofo e místico grego, 600 a.C.
[4] O Fim da Terra e do Céu por Marcelo Gleiser Companhia das Letras 2001. 
[5] Por exemplo, Eurípedes Barsanulfo – homem muito religioso, aclamado médium espírita morreu vitimado pela gripe espanhola. A natureza do vírus é indiferente às questões morais.
[6] Referência ao filme de 1996 “Joe e as baratas” em que a barata líder e profeta de um grupo de baratas que vive no apartamento do Joe se expressa dessa forma: “o sangue de barata tem o poder”. Vale salientar que cientistas estão desenvolvendo antibióticos para combater certas cepas de bactérias ultra resistentes a partir das baratas.

Comentários

  1. Boa noite Humberto, quanto tempo! Estava imaginando mesmo sua opinião sobre a famosa transição planetária hehe já recebi vários textos e áudios confirmando que o momento é agora. Prefiro já nem responder mais kkkk o pior pra mim foi ouvir que quem esta ficando doente é porquê tem vibração baixa e por isso não ficaria aqui após a transição se não houvesse mudança na pessoa. A gente fica até sem palavras hehe mas no meio de tanta bobeira que estamos escutando ser falada por aí o melhor a fazer é ignorar kkk Abraços :)

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  2. Irmão Humberto, na condição de um discípulo que ouve o mestre, acho mais plausível aprender do que tecer um comentário a respeito. Confesso que se fosse mais condensado (sem afetação do seu teor magnificamente lúcido) isso poderia ser factível, e isso só traduz minhas limitações para discutir aspectos do texto.

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  3. Sim...também tenho ouvido que a pandemia é uma "doença espiritual", e que temos q vibrar bem para estarmos protegidos!
    Que culpa para os maus pensamentos ( inevitáveis frente a tudo q vem acontecendo! ), serei contaminado e ainda contaminarei o próximo? Se estiver vibrando como eu?
    Teria q olhar para o pandemônio com cara de paisagem?
    Ahh....o Espiritismo, como o conhecemos...

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  4. Meu amigo Humberto, de fato, transição parece ser uma palavra estratégica que evidencia o nosso lugar como seres transitórios. Assim, a pandemia faz o trabalho de levar muitos irmãos, a transição já estava presente e seguirá presente, afinal, ela escancarou, como você disse: "antivacinistas, terraplanistas, conspiracionistas, apocalípticos e congêneres, videntes, cloroquinistas e políticos de viés populista, religiosos que apregoam que o vírus é obra de Satanás". A pandemia irá embora, mas esse bando aí ficará entre nós...

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  5. Espiral em aberto.
    Entendo o percurso da humanidade em fases contínuas que depois de passadas, e olhadas com distanciamento, é possível identificar o que cada ciclo representa em mudanças coletivas e individuais, originadas pelos próprios seres humanos.

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