O que me motivou a homenagear o "Seu" Ary imediatamente à sua morte, deve ter sido inspirado no texto que segue abaixo somado à gratidão guardada vivamente em minha alma.
Não sei, mas posso ser punido por publicar crônica de autoria de Rubem Alves Tempus Fugit, Editora Paulus, 1990, mas valerá o risco.
TEMPUS FUGIT
Rubem Alves
Eu tinha medo de dormir na
casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores,
escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos
caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas. De dia, tudo era
luminoso, mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no
sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. De dia, ele estava lá também.
Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora,
ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque
durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu
ressonar e suas músicas eram seus sonhos. De noite, ao contrário, quando todos
dormiam, ele acordava, e começava a contar estórias. Só muito mais tarde
vim entender o que ele dizia: “Tempus fugit”. Eu ficava na cama, incapaz
de dormir, ouvindo sua marcação sem pressa, esperando a música do próximo
quarto de hora. Eu tinha medo. Hoje, acho que sei por quê: ele batia a
morte. Seu ritmo sem pressa não era coisa daquele tempo da minha insônia
de menino. Vinha de muito longe. Tempo de musgos crescidos em paredes úmidas,
de tábuas largas de assoalho que envelheciam, de ferrugem que aparecia nas
chaves enormes e negras, da senzala abandonada, dos escravos que ensinaram para
as crianças estórias de além-mar, de grandes festas e grandes tristezas,
nascimentos, casamentos, sepultamentos, de riqueza e decadência.
O relógio batera aquelas horas —
e se sofrera, não se podia dizer, porque ninguém jamais notara mudança alguma
em sua indiferença pendular. Exceto quando a corda chegava ao fim e o seu
carrilhão excessivamente lento se tomava num pedido de socorro: “Não quero
morrer!”. Aí, aquele que tinha a missão de lhe dar corda (pois este não era
privilégio de qualquer um: só podia tocar no coração do relógio aquele que já,
por muito tempo, conhecesse os seus segredos) subia numa cadeira e, de forma
segura e contada, dava voltas na chave mágica. O tempo continuaria a
fugir. Todas aquelas horas vividas e morridas estavam guardadas. De noite,
quando todos dormiam, elas saíam. O passado só sai quando o silêncio é grande,
memória do sobrado. E o meu medo era por isto: por sentir que o relógio, com
seu pêndulo e carrilhão, me chamava para si e me incorporava naquela estória
que eu não conhecia, mas imaginava. Já havia visto alguns dos seus sinais
imobilizados, fosse na própria magia do espaço da casa, fosse nos velhos álbuns
de fotografia, homens solenes de colarinho engomado e bigode, famílias
paradigmáticas, maridos assentados de pernas cruzadas, e fiéis esposas de pé,
ao seu lado, mão docemente pousada no ombro do companheiro. Mas nada mais eram
que fantasmas, desaparecidos no passado, não se sabendo deles nem mesmo o
nome. “Tempus fugit”. O relógio toca de novo. Mais um quarto de hora.
Sentia que o relógio me chamava para o seu tempo, que era o tempo de todos
aqueles fantasmas, o tempo da vida que passou.
Depois o sobradão pegou fogo. Ficaram
os gigantescos barrotes de pau-bálsamo fumegando por mais de uma semana,
enchendo o ar com seu perfume de tristeza. Salvaram-se algumas coisas. Entre
elas, o relógio. Dali saiu para uma casa pequena. Pelas noites adentro ele
continuou a fazer a mesma coisa. E uma vizinha que não suportou a melodia
do “Tempus fugit” pediu que ele fosse reduzido ao silêncio. E a alma
do relógio teve de ser desligada. Tenho saudades dele. Por sua tranquila
honestidade, repetindo sempre, incansável: “Tempus fugit”. Ainda comprarei
um outro que diga a mesma coisa. Relógio que não se pareça com este no meu
pulso, que marca a hora sem dizer nada, que não tem estórias para contar. Meu
relógio só me diz uma coisa: o quanto eu devo correr para não me atrasar. Com
ele, sinto-me tolo como o coelho da estória da Alice, que olhava para seu
relógio, corria esbaforido, e dizia: “Estou atrasado, estou
atrasado…”. Não é curioso que o grande evento que marca a passagem do ano
seja uma corrida, a corrida de São Silvestre? Correr para chegar aonde?
Passagem de ano é o velho relógio que toca o seu carrilhão. O sol e as estrelas
entoam a melodia eterna: “Tempus fugit“. E porque temos medo da verdade que só
aparece no silêncio solitário da noite, reunimo-nos para espantar o tenor, e
abafamos o ruído tranquilo do pêndulo com enormes gritarias. Contra a música
suave da nossa verdade, o barulho dos rojões. Pela manhã, seremos, de novo, o
tolo Coelho da Alice: “Estou atrasado, estou atrasado…”. Mas o relógio não
desiste. Continuará a nos chamar à sabedoria: Quem sabe que o tempo está
fugindo descobre, subitamente, a beleza única do momento que nunca mais será.
Querido Humberto, estou acompanhando suas postagens e levando os ensinamentos para o meu dia. Obrigada por esse espaço que vc compartilha conosco seus pensamentos. Grande abraço
ResponderExcluirRubem Alves, sempre um presente,
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