Estimado Humberto, o feliz destaque
"[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo
natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o
método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do
"eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns
espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém
sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a
"[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria
importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do
"eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência"
(Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação
e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador?
Samuel
Prezado irmão Samuel, obrigado
pela sua companhia. É uma honra tê-lo aqui. Sem dúvida há uma relação entre
Nietzsche e o estado de superação do ego.
Corrija-me se estiver errado:
essa vontade de potência me impulsiona para um estado que Nietzsche chamava de
"além do homem" - que erroneamente alguns o chamam de
"super-homem". Esse estado, a
meu ver, é o mesmo que Kardec denominava "perfeição espiritual",
porém com uma diferença: enquanto Nietzsche evocava um estado assim, no imanente;
Kardec o remetia ao transcendente.
Como você bem observou, os
espíritas, em geral, acreditam que o sofrimento pode levar a esse estado
diferenciado – e aqui estou expandindo a ideia para o que eles chamam de “reencarnações
expiatórias”. Ubiratan se posiciona contra essa ideia, embora afirme que a
"desidentificação do pensamento como eu" é um processo comburente, ou
seja, que provoca muita dor (psíquica) como o fogo provoca muita dor física; e,
também, porque somos intrinsecamente
egoístas.
Dito de outra maneira, eu
acredito que o inferno é um portal para essa condição ideal de desidentificação
do pensamento como “eu”. Nele há um fogo que não se extingue e que “queima a
carne” que não se consome.
Essa combustão, essa
"queima" de dados psicológicos produzidos pelo condicionamento só se
dá pela experiência no mundo e não fora dele; é o "nascer de novo" de
Jesus e o mito grego de Fênix.[1]
Pergunto ao meu leitor: quer se
salvar? Então, deixe-se queimar.
Difícil? E quem disse que seria
fácil?
Grande abraço meu irmão.
Nota: Em tempos do “politicamente
correto” é preciso esclarecer que, aqui, “queimar” está no sentido figurado e não
no sentido próprio.
[1] Fênix:
pássaro da mitologia grega que, ao morrer, entrava em autocombustão e, passado
algum tempo, ressurgia das próprias cinzas.
Querido Humberto,
ResponderExcluirObrigado pela interlocução. De fato, muitos traduzem o Übermensch de Nietzsche por super-homem como se houvesse algo com super poderes. O além-homem diz respeito à superação do que se é. Em minha tese da educação aristocrática, inclusive, explorei a necessidade da autocrítica e da autossuperação como condições necessárias para a compreensão do que se é, mesmo que este estado não signifique algo passível de ser capturado. Em Nietzsche não há sujeito por não se conceber o "em si". Aliás, há uma expressão interessante dele que diz "es denkt in mir" ou seja, "algo pensa em mim" deixando transparecer que não se pode controlar o que se é por não ser possível capturar o que se é. É neste contexto que o Der Wille zur Macht (vontade de potência) se expressa como um conjunto de forças internas e externas e busca se expandir continuamente, sem rumo. Em Nietzsche, portanto, além de não haver sujeito, não há crescimento, desenvolvimento, evolução, involução. Há vontade de potência e nada além disto.
O "es denkt in mir" lembra o daimon presente em Heráclito que afirmou: “o daimon é o ethos do homem” significando que a ética é o ponto mais sublime da consciência. Vejo nos gregos e em Nietzsche a afirmação de forças que estão presentes mas que não obedecem a uma ordem, a um comando por não haver sujeito, ao menos no sentido cartesiano.
Enfim, tudo isto para dizer que com Nietzsche talvez não tenhamos as ferramentas para pensar a evolução espiritual. Talvez possa ser o caso de inserir outro pensador que me parece apropriado para tratar de algo que você invocou que é a questão da "queima". Pierre Hadot em Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga fala da importância de se aprender a morrer, além de outros exercícios espirituais. Seria o “aprender a morrer” a base do "nascer de novo". Penso que sim...
Abração e obrigado pelo raro e profícuo espaço!!
Caro irmão Samuel, mais uma vez obrigado pela sua contribuição em nosso espaço. Gostaria que você disponibilizasse, se possível, esse material sobre "educação aristocrática". Grande abraço.
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