No último texto postado falei do “sangue
de barata”. Desta vez, ofereço-lhes um texto o qual tive contato pelo meu filho
Jonas no fim dos anos 90. A autoria é de Marco Frenette. Nele, Frenette fala do
poder do sangue de um cavalo.
Nota: o tamanho do texto foge do
critério utilizado por mim neste espaço que é o de textos curtos para não cansar a beleza de ninguém.
CAVALOS E HOMENS
Marco Frenette
Revista Caros Amigos, setembro
1999.
Essa short cut cabocla está há
tempos cristalizada na memória coletiva de minha família, e me foi contada pela
minha avó materna.
Corria o ano de 1929 quando
ela se casou, no interior de São Paulo, com o homem que viria a ser meu avô.
Casou-se contra a vontade dos pais, que queriam para a filha alguém com posses
compatíveis as da família, e não um homem calado, pobre e solitário, que vivia
num casebre ladeado por uns míseros metros quadrados de terra. Minha avó,
porém, que era quase uma criança a época, fez valer a força de sua
personalidade, e foi, sem levar absolutamente nada da família, viver na pobreza
com o homem que amava.
No primeiro ano de casamento
levaram uma vida quase miserável. Dormiam apertados em uma cama de solteiro,
cozinhavam nas únicas duas panelas que tinham, e trabalhavam arduamente no
campo, esperando a recompensa futura da boa colheita. Os frutos da terra
cultivada vieram no início do ano seguinte, quando conseguiram dinheiro
suficiente para comprar mais um pedaço de terra e uma charrete para passeios
dominicais, a qual veio acompanhada de um magnífico cavalo. O animal, bonito e
robusto, com pelos brilhantes e escuros a cobrir-lhe os músculos bem definidos,
tornou-se logo um elemento fundamental de suas vidas. Era a união da estética a
funcionalidade. Ele servia tanto para as lidas de tração quanto para as de
carga: de segunda a sábado trabalhava no campo; no domingo, levava meus avós
para passear, ocasião em que a charrete lhe parecia uma pluma em comparação com
o peso descomunal dos ferros do arado.
Numa manhã, quando um sol
particularmente árido iluminava aquela terra inculta, o jovem casal, sem
imaginar que aquele dia seria especial, saiu para trabalhar no campo. Minha
avó, a frente do animal, controlava a direção; enquanto meu avô ia atrás,
equilibrando o arado e observando os sulcos que nasciam sob seus pés. Assim
trabalharam até o meio-dia, árdua e harmoniosamente. Foi quando o cavalo,
extenuado e com fome, começou a parar, de quando em quando, para comer capim,
virando a cabeça para alcançar os tufos mais suculentos. Quando acontecia isso,
minha avó esperava, sem nenhuma pressa, o animal comer, para só depois
reiniciar a aragem. Isso irritou meu avô, que protestou contra as interrupções.
Minha avó respondeu que não tinha coragem de impedir o animal de saciar a fome.
Se o marido quisesse fazer
isso, que tomasse a dianteira. Foi quando trocaram de lugar. Araram mais um
pouco a terra, e logo o cavalo avistou outro tufo de capim; fixou os olhos no
alvo, e rumou em direção ao alimento, desviando-se totalmente da linha
imaginaria de aragem. Meu avô ainda tentou impedi-lo, puxando-o pelo cabresto,
mas não teve a mínima chance contra a obstinação do animal. O cavalo,
arrastando-o junto, chegou até o tufo, e pôs-se a comer. Ao ver o arado
tombado, que deixara atrás de si, como se fosse um rabo, um sulco torto e
inesperado no solo, meu avô foi invadido por um imenso e inexplicável rancor,
que imediatamente se converteu em ódio. Foi quando estourou: o cavalo sentiu
entrar nos focinhos o solado duro da bota de campanha que meu avô calçava. Ao
receber aquela pancada fortíssima, o animal, sem emitir nenhum som, volveu-se
um pouco para trás, e levantou a cabeça o máximo que pode, como se pedisse
clemência aos céus. E assim permaneceu, imóvel, com a cabeça levantada e os
olhos ensopados de lágrimas. Meu avô ainda tentou empurrá-lo, mas o animal
parecia uma estátua em sua imobilidade. Retesado de dor, tornava-se um monumento
vivo, casual e fugaz, a estupidez humana. Frente aquela inesperada atitude, meu
avô quedou-se perplexo, e ficou por um instante hipnotizado pela impressionante
silhueta que se recortava, brilhante em seus contornos, contra o horizonte
ensolarado. Quando o cavalo abaixou, lenta e dolorosamente, a cabeça, jorrou de
suas narinas um sangue farto, que escureceu ainda mais uma terra já rubra por
natureza. Ao ver aqueles focinhos estourados, meu avô teve consciência do que
tinha feito, e finalmente entendeu que seu descontrole não tinha, a rigor, nada
a ver com a atitude instintiva de um cavalo faminto; sua raiva era do mundo.
Em questão de segundos,
rememorou todas as humilhações e privações por que tinha passado; então,
descortinou-se para ele o entendimento de que sua fúria era filha de uma vida
inteira afogada em infelicidade. Ao compreender, finalmente, de que mal sofria,
desatou a chorar. Chorou um choro carregado de remorso, um choro profundo que
foi molhando suas antigas réstias de resignação. Minha avó lembra como se fosse
hoje: aquele homem desorientado, minado em suas forças, abraçado ao pescoço do
cavalo. Ficou observando a cena a distância, não ousando interferir no que
talvez fosse o primeiro contato de meu avô com sua própria humanidade: momento
privilegiado de compreender e superar um sentimento de impotência para com a
vida. Após um tempo, meu avô tirou a camisa molhada de suor e limpou
delicadamente o focinho machucado. Depois, acariciou a fronte do animal, e
afastou-se.
Neste dia, não trabalharam mais.
Voltaram para casa em silêncio, e assim meu avô permaneceu uma semana inteira,
curtindo, num completo mutismo, a dolorosa lembrança daqueles dois grandes
olhos mareados a lhe pedir piedade. Foram noites e dias inteiros povoados por
olhos negros, lágrimas, sangue e tufos de capim. Na semana seguinte, quando
voltou a falar, minha avó espantou-se. A voz que ouvia parecia vir de outro
homem. Meu avô transformara-se. Logo, o estranhamento que tomou conta dela
estendeu-se também as pessoas que o conheciam. Um homem que tanto apreciava a
caça, agora, desfazia-se dos rifles. Um siciliano que se orgulhava de pertencer
a uma raça de fortes que não sabia o que era voltar para casa carregando
desaforos, agora compreendia e perdoava os desafetos. As rinhas noturnas a céu
aberto, onde furiosos galos índios sangravam ao luar, perdeu, de uma hora para
outra, seu mais contumaz frequentador. Todos viam, também, que agora meu avô
andava desarmado, livre do pesado Colt 44. Assim, todos que conheciam aquele
italiano, outrora de sangue quente, foram se acostumando com aquela voz mansa,
que pronunciava, as vezes com excessiva frequência, a palavra "paz".
Minha avó me assegura que o homem doce, compreensivo e justo que conheci só
passou a existir graças a esse incidente no campo, quando algo misterioso e
definitivo ocorreu em seu interior, levando-o definitivamente para a senda da
concórdia. Até sua morte, alguns anos atrás, ele soube manter domesticado o
gênio violento. E o que me marcou nessa história foi a conversão psíquica de um
homem que se tornou pessoa sem precisar encontrar o dalai-lama, sem precisar
ler literatura esotérica, e sem ter de clamar, como um desesperado, pelo poder
do sangue de Jesus. Na mudança radical de meu avô também não houve drogas nem
álcool, e muito menos alucinógenos sagrados. Sua serenidade - que muitos anos
depois tanto me impressionaria - veio ao acaso: dádiva de uma situação pagã,
celebrada no sangue estranhamente purificador de um cavalo."
Um dos contos mais belo que já li.
ResponderExcluirObrigado meu amigo por compartilhar essa istoria de vida, que nos faz refletir, no que somos, e no que podemos ser
ResponderExcluirBerto amado, me tocou profundamente este conto. Me fez ate chorar e sei porque.
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