05/06/2024
Refletindo sobre o luto...
Observa-se, na sociedade contemporânea, uma tendência ao ocultamento do luto. Nisto revela-se o sintoma de uma sociedade adoentada pela lógica capitalista neoliberal na qual o ganho, o lucro, o sucesso, a vitória são tidas como obrigações de quem está inserido no mercado de trabalho, e mais extensivamente, na vida pessoal, sem levar em consideração que nem sempre é assim que as coisas acontecem: todos temos nosso Curriculum vitae[1] – aquilo que deu certo em nossa biografia; e nosso Curriculum mortis – aquilo que deu errado pelas nossas escolhas ou pelas circunstâncias.
Essa postura de negação (ocultamento) das contrapartidas da vida, como: a perda; o prejuízo; o fracasso; a derrota, é prova empírica de nosso adoecimento. Por extensão, o luto – como uma forma de perda, é o contraponto mais evidente da mentalidade voltada para o sucesso incondicional exigido pelos agentes econômicos, políticos e sociais do presente, e tem sido um estorvo na vida de muita gente. Por esta razão, o luto tem sido terceirizado e customizado no intuito de escapar das armadilhas da morte com suas frustrações e perdas.
Recentemente, tivemos um caso emblemático de um presidente derrotado nas urnas negar-se a passar a faixa presidencial para o ganhador da eleição. Não se trata somente de aversão recíproca entre os candidatos, da uma negação da derrota referida acima – fato inadmissível dentro dos parâmetros exigidos por uma política de sucesso incondicional.
Portanto, guardar o luto não só é um período de grande sofrimento psíquico, mas também, dentro da lógica mercantilista, a confirmação da derrota maior para a existência humana. A morte é um tapa na cara de todos os envolvidos e anestesiados em bater metas, porque não podem fugir da realidade posta pela condição de seres provisórios e precários.
Alguém levantará a mão e dirá:
E a vida espiritual, não conta para você?
Conta, sim. Não a perco de vista. Mas não agora, enquanto eu estiver encarnado, envolvido por vísceras e nervos no imanente a que a vida me subjugou.
A esse questionador, devo lembrar o já citado caso de Thoreau[2]: o mundo espiritual é uma promessa muito interessante, mas temos de viver um mundo de cada vez.
Abro
parênteses para introduzir a lembrança do que já falei em outro momento, aqui
neste espaço (veja links abaixo): para mim, há um engodo argumentativo, nas
escolas espiritualistas, no qual se mantém a crença na continuidade da singularidade
da pessoa depois da morte.
(se
puder, leia as duas postagens dos links abaixo)
https://espiritismosec21.blogspot.com/2019/07/nomovimento-espirita-brasileiro-ha.html
https://espiritismosec21.blogspot.com/2020/03/a-queima-do-eu.html
Sei, muitos levantarão pedras para atirar, mas pensem comigo: ao morrermos, defrontamo-nos com a perda irreversível da singularidade a que estávamos acostumados quando aqui encarnados. Ao desencarnar – eufemismo para a morte – eu não estarei mais representando o papel de Humberto. Serei espírito com múltiplas experiências vividas na Terra.
Perco a minha identidade, minha cidadania, mina posição social, meu isso, meu aquilo. Sou como o camelo que passou pelo fundo da agulha, abandonando toda a sua carga para trás[3]. É disso que eu trato aqui.
Sempre
olho para o espelho e digo: você está Humberto; você não é
Humberto.
Krishnamurti
dizia que não temos medo da morte pelo desconhecido que ela se apresenta,
mas temos medo da perda do conhecido.
Além
de assustador, é insuportável para nós, seres apegados, tentarmos,
maliciosamente, driblar a morte, como um Sísifo[4]
que, ao morrer, fora condenado pelos deuses a uma tarefa repetitiva e
indefinida e sem sentido.
A perda dessa singularidade que revestimos enquanto encarnados (o eu carregado de condicionamentos) faz da morte um grande desafio. É tolice tentar fugir dessa roda da vida[5]. E, porque não dizer, acréscimo de sofrimento ao nosso já complicado cardápio de expiações na Terra.
Muitos desses espiritualistas que tentam desprezar o imanente – o aqui e agora - apenas para, vaidosamente, demonstrar grande grau de compreensão das coisas espirituais e simular desprendimento, são os mesmos que, quando a realidade bate às suas portas, gritam e estrebucham no chão pedindo favores a Deus. Dou um exemplo real:
Uma
grande amiga contou-me que, certo dia, a filha de uma conhecida sua, a procurou
pedindo-lhe ajuda para resolver uma questão com sua mãe: ela engravidara e se
sentia constrangida em contar para a mãe, porque além de muito religiosa, tinha
uma extrema preocupação com uma possível gravidez da filha, muito jovem ainda.
Minha
amiga então montou uma inteligentíssima estratégia: sabendo que a mãe da menina
era atuante na Federação Espírita do Estado de São Paulo, orientadora no curso
de O Evangelho Segundo o Espiritismo, decidiu chamá-la para um café da tarde.
Lá
pelas tantas, minha amiga pediu uma “orientação” dizendo: fulana, eu tenho uma
grande amiga cuja filha, muito jovem, engravidou e tem muito medo da mãe, cuja
reação seria nada amigável. Desesperada, pensa até em abortar. O que você diria
a essa mãe?
A
mulher, sacando de sua bolsa um exemplar de Allan Kardec, começa a mostrar que,
segundo as orientações doutrinárias, a mãe da menina deveria entender os
mecanismos divinos da encarnação, a nobreza de ser mãe, enfim, a beleza de ser
instrumento de Deus para dar oportunidade aos espíritos renascerem. Sua voz
estava embargada pela emoção.
Minha
amiga fez uma pausa, respirou e disparou: pois é, fulana, essa menina que
engravidou é a sua filha.
Como
num temporal repentino, toda aquela “compreensão” e afabilidade desapareceu com
gritos, lamentos e indignação, a ponto de minha amiga ter de socorrê-la na
aflição em que se punha.
Claro, depois dos ânimos acalmados, tudo se resolveu com a vinda de um netinho. Mas a reação daquela mulher cristã devota, demonstrou o quanto somos frágeis em nossas crenças e condutas.
Fingimentos de fortaleza, falsos moralismos e rompantes de heroísmo pelo ocultamento do luto podem nos colocar no lugar daquela mulher a ponto de sermos motivo de riso e de narrativas futuras nas quais seremos personagens ridículos de uma ópera-bufa.[6]
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] O Curriculum vitæ,
expressão latina de um documento de tipo histórico, que relata a trajetória
educacional e as experiências profissionais de uma pessoa, como forma de
demonstrar suas habilidades e competências. Curriculum Mortis seria
o lado B da biografia de alguém, onde se demonstraria os fracassos e erros.
[2] Henry David Thoreau (1817-1862) foi um autor estadunidense, poeta,
naturalista, pesquisador, historiador, filósofo e transcendentalista. Ele é
mais conhecido por seu livro Walden, uma reflexão sobre a vida simples cercada
pela natureza, e por seu ensaio A Desobediência Civil.
[3] Referência à passagem que Jesus diz que: é mais fácil um camelo passar
pelo fundo da agulha, do que um rico entrar no Reino dos Céus.
Alguns comentadores,
para aplacar a indignação dos ricos, dizem que Jesus se referia a um lugar
chamado “buraco da agulha” – uma passagem estreita por onde os mercadores
deveriam alcançar o pátio onde negociavam suas mercadorias. A estreiteza da
passagem obrigava os mercadores a tirarem toda a carga trazida sobre o lombo
dos camelos. (obviamente, não se trata de um dado histórico, mas elimina o
mal-estar causado em quem tem grande fortuna).
É bom salientar que,
Jesus não elimina por completo a possibilidade de um rico entrar no Reino dos
Céus, porque ele aplica a expressão “é mais fácil” e não a expressão de
impedimento total que seria “é impossível”.
[4] Sísifo, rei lendário de
Corinto, tentou enganar os deuses e, por essa razão, depois de sua morte, foi
condenado a levar uma pedra ao alto de uma montanha, onde o pedaço de rocha, ao
ser posto no cume, voltava para o lugar original, onde Sísifo deveria retomar a
tarefa e repeti-la eternamente.
Hoje, a expressão é
utilizada para se referir a uma tarefa repetitiva e sem fim e com a agravante
de não ter sentido algum.
Por muitos anos fui um
Sísifo moderno: diariamente, carimbando e assinando documentos os quais nem a
escrivaninha, nem o carimbo e nem os documentos existem mais.
[5] Alusão ao livro de autoria da psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross
– A Roda da Vida.
[6] Ópera-bufa: de origem italiana, uma peça de teatro onde os
personagens são grosseiros e provocam riso.
Muito boconformistas, que acalentam nossos corações nesta hora. E minha mãe então disse: " que bom saber que vc é tão preparada prá quando for a minha hora"... mas, é claro que não! A angústia, o medo foram imediatos! m, humberto! Traduziu muito do que penso em minhas angústias sobre a morte, o luto, a perda do conhecido...e o quanto é difícil quando está ao nosso lado, mesmo com todas as nossas crenças...outro dia, eu e minha mãe conversávamos ao telefone sobre a partida de um amigo dela, e trocávamos falas " prontas",
ResponderExcluirLi e respondi as duas postagens por ti sugeridas.
ResponderExcluirSe na teoria sabemos que é preciso diariamente deixar morrer um pouco do orgulho e do egoísmo dentro de nós, na prática, aprendemos na 'marra' o desprendimento do controle das circunstâncias, da posse dos objetos, e dos quereres exclusivamente individuais.
Um treino, necessário e diário, que exige vontade de se despojar do velho padrão de ser, corrompido por desejos personalistas, e agasalhar-se em renovados modos de existir.
Para tal êxito reessignifiquemos os nossos sentimentos e as nossas visões de mundo a fim de nos libertarmos dos efeitos, fora do nosso alcance, e focarmos mais nas ações libertadoras.
"Deixe que os mortos sepultem seus próprios mortos (...) " - Lucas 9: 59.