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DESIDENTIFICAÇÃO PSICOLÓGICA


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No Movimento espírita brasileiro há pessoas que discutem com grande entusiasmo sobre a identidade do Espírito de Verdade – entidade que assina o prefácio do Evangelho Segundo o Espiritismo conforme acima. Algumas delas dizem que é a representação de um grupo de espíritos com os quais Kardec trabalhou na construção da Doutrina Espírita; outras dizem que se trata de Jesus.

O que acho disso? Pura perda de tempo, gasto de energia mental e cultura inútil.

Com essa discussão estéril, essas pessoas deixam de notar algo muito mais profundo e importante: o que a mensagem quer dizer...

Aí entra um sútil recado dado pela entidade que assina a mensagem. Vou tentar explicar abaixo:

É curiosa a relação que faço de um detalhe desse prefácio e o que diz Ubiratan Rosa em seu ensaio “Mais Treva do que Luz”.

Diz ele no referido ensaio: o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”. O que significa isto?

Ao encarnarmos, naturalmente, vamos nos identificando profundamente com a persona representada nessa existência e distanciamo-nos da ideia de que somos espíritos ocupando um corpo e não um corpo que tem um espírito. Vale lembrar a frase do jesuíta filósofo, teólogo e paleontólogo Teilhard de Chardin que diz: Não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, somos seres espirituais vivendo uma experiência humana.

Imagine você caro leitor que um ator representasse o mesmo personagem em uma peça, por muitos anos seguidos, a ponto de sua identificação com esse personagem se tornasse tão grande ao ponto de não saber distinguir o personagem do ator. E que negasse a deixar essa situação mesmo que soubesse, racionalmente, de tamanha aberração. É isso o que acontece com a maioria dos espíritos ao voltar para o mundo físico; e é por isso que há sofrimento na morte e depois dela.

Voltando a Ubiratan Rosa: ele diz que o sofrimento é um atributo indissociável deste mundo, porque é inexorável que deixemos, cedo ou tarde,  o papel que representamos no teatro da vida. E mais, é um processo natural. Portanto, quanto mais identificado estou com o personagem que represento, mais sofrimento se acrescenta à existência.

Um dos sinais que indica esse apego ao personagem representado é o nome. Quanto mais apegado, mais  preocupação em manifestar-se com um nome – que, naturalmente, liga à ideia de lugar, família, profissão, títulos honoríficos, posição social, etc. O inverso é verdadeiro, quanto mais elevado é o espírito menos importância dá ao que representou na Terra; portanto, menos ligado ao nome.

Neste passo lembro do pensador indiano Jidu Krishnamurti: a maioria de nós aspira à satisfação de ocupar uma certa posição na sociedade, porque temos medo de ser ninguém. Essa fala do pensador faz referência à identificação psíquica e ao forte condicionamento psicológico nos quais estamos submetidos.

Quando morremos, tornamo-nos espíritos; seres humanos sem corpo, sem endereço, sem identidade – uma espécie de camelo que passou pelo fundo da agulha e deixou toda a “carga” que carregava para trás.

Quando a entidade comunicante assinou “Espirito de Verdade”, esse espírito quis dizer que não estava interessado em mostrar “quem era”, mas dizer, de forma subliminar: prestem atenção no conteúdo da mensagem, não em quem a assina; e com isso chamar nossa atenção para a necessidade da desidentificação do pensamento como "eu".

Difícil? E quem disse que seria fácil?


Nota: como se trata de um processo natural – o condicionamento, assim como um processo intelectual o de descondicionamento, fica evidente que, apesar de ter noção disso, eu também estou inserido neste plano de apego ao nome e a tudo que a ele está ligado.



Comentários

  1. Muito bom, claro e objetivo este texto o qual deixa claro para os leitores os apegos que temos e insistimos ao longo de nossas vidas em carregar.

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  2. Obrigado Evaldo pelo comentário. Saudações.

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  3. É preciso estar atento para não nos deixarmos levar pelos acessórios (a embalagem, a assinatura, etc) e nos concentrarmos na essência, aquilo que tem por dentro, no conteúdo. Obrigada pelo alerta! é sempre bom refletir!

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  4. Estimado Humberto, o feliz destaque "[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do "eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a "[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do "eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência" (Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador?

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