Os judeus têm um longo legado de riso, às vezes adjacente ao nosso longo legado de lágrimas. Há uma sólida tradição de autocrítica agridoce, muitas vezes ao ponto da autodepreciação, que se mostrou um instrumento confiável de sobrevivência num mundo hostil. E uma vez que riso, lágrimas e autocrítica são quase sempre verbais, todos eles fluem tranquilamente no hábito hebraico e judaico de discutir por tudo e debater com todo mundo: consigo mesmo, com os amigos, com os inimigos e às vezes com Deus. Esses traços judaicos de rir e de discutir são, ao mesmo tempo, muito sociais e profundamente individuais. Vou terminar com uma reflexão sobre este verso sublime do poeta inglês John Donne. "Nenhum homem é uma ilha". A isso, ouso acrescentar: nenhum homem é uma ilha, mas cada um de nós é uma península: em parte conectado com a terra firme da família, da sociedade, da tradição, da ideologia, etc. - em parte voltado para os elementos, sozinho e em silêncio profundo. (Amós Oz, 2016, p. 31-2[1])
Excerto do livro ESPIRITISMO JUDAICO de Andréa Kogan
Editora Labrador, 2018
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O que me chamou muito a atenção foi o título dessa obra de Andréa Kogan – que é a derivação de sua tese de doutorado em Ciência da Religião pela PUC-SP - Vivência Espiritual Judaica na metrópole paulistana: judeus-espíritas na contemporaneidade, 2016.[2]
A sinopse do livro posta no site da Amazon resume a proposta da tese:
O Brasil é mesmo um país de práticas religiosas híbridas. Ninguém escapa disso. Este brilhante livro da jovem pesquisadora Andréa Kogan revela, a partir de um percurso teórico e empírico, o encontro entre o judaísmo e o espiritismo na cidade de São Paulo. Esses judeus espíritas são ashkenazim e provenientes, prioritariamente, do Leste Europeu. Chegam ao Brasil a partir da Segunda Guerra Mundial e, então, iniciam suas práticas de “evangelhos no lar”, que se constituem em estudo e prática da tradição espírita kardecista. A pesquisadora frequentou muitas dessas reuniões a fim de construir sua fundamentação empírica. A obra se ocupa também de uma sólida discussão acerca do que seriam essas duas identidades, a judaica e a espírita, a partir do que há de mais contemporâneo e consistente na fortuna crítica sobre ambas as religiões. Trata-se, assim, de um exemplo do que há de melhor em estudos de religião no Brasil nos últimos anos.
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Essa
mistura entre judaísmo e espiritismo me remeteu à impressão que tive na
aquisição do LIVRO DAS RELIGIÕES publicado pela Globo Livros.
À
época, busquei apressadamente pelo verbete “espiritismo” para saber o que os
editores haviam comentado sobre o assunto.
Não
encontrei nada.
Fiquei deprimido em não encontrar nenhuma menção ao verbete? Claro que não. Achei ótimo, porque para mim, como explicado no texto publicado aqui (ver link no rodapé[3]), o Espiritismo não é e não pode ser “uma religião”.
A pesquisa de Andréa Kogan revela uma interessante abertura de alguns judeus à doutrina espírita, demonstrando que a busca por espiritualidade transcende as fronteiras dogmáticas e pode se apresentar como um caminho complementar de auxílio às diversas correntes religiosas.
Não
custa repetir Kardec em dois pontos:
1) Em O Livro dos Espíritos, parte II,
capítulo 2 Da Encarnação dos Espíritos
Haverá nisso alguma coisa de antirreligioso? Muito ao contrário,
porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e
da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da
religião (destaque meu).
2)
Em
O Espiritismo na sua expressão mais Simples
Pode-se, portanto, ser católico, grego ou
romano, protestante, judeu ou muçulmano, e crer nas manifestações dos
Espíritos, e, por conseguinte, ser Espírita; a prova disso é que o
Espiritismo tem aderentes em todas as seitas (destaque meu).
O livro da Andréa Kogan é um convite à reflexão
sobre a importância de abandonarmos alguns atavismos que travam o exercício da
tolerância, pensando e ampliando nossos horizontes além de miudezas criadas
pelo espírito de tribo. Sei, é difícil se desvincular de nosso condicionamento
psicológico ancestral, mas não custa tentar.
Concluo dizendo: a doutrina espírita,
assim como o espírito judaico, não é uma ilha, mas uma península, como citado pelo
escritor israelense Amós Oz.
Essa aproximação entre Doutrina Espírita e Judaísmo é bem-vinda, porque contribui para que os judeus utilizem as ferramentas teóricas e empíricas da doutrina, ao mesmo tempo que leva mais leveza aos espíritas para encarar com humor as dores da existência.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Amós Oz: (1939-2018) escritor
israelense, um dos fundadores do movimento pacifista Paz Agora. A
citação feita por Andréa Kogan é do livro de Amós intitulado Como curar um
fanático, Cia das Letras, 2016.
Eu li o livro da Andrea; ela é conhecida de uma colega que me indicou a obra.
ResponderExcluirInegável que "o Brasil é mesmo um país de práticas religiosas híbridas."
É um amém aqui,
um axé ali,
um Deus no comando acolá;
um passe, de um lado,
um Johrei, de outro,
benzimento de um jeito católico,
benzedura de um modo umbandista;
Anjos, guias, Espíritos protetores;
Velas no altar e velas na esquina;
Prece, oração, transe, mediunidade.
E por aí vai.
E assim os seres peregrinam por várias veredas, no tempo e no espaço: sumérios, assírios, egípcios, grecos-romanos, judaicos-cristãos, entre outros.
Por alto, todas as religiões têm os seus enxertos ou infiltrações conceituais. Nada é estástico. Isso, ao meu ver, é o dinamismo da Vida.
Concordo contigo, bom humor é sempre bem vindo!