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ESPIRITISMO E DOUTRINA ESPÍRITA


 

Dou início a um projeto no qual, inspirado no título de uma entrevista feita com o filósofo Gilles Deleuze, a qual recebeu o título de “O Abecedário Deleuze”.

Portanto, tratarei dos temas numa sequência alfabética, arriscando ser repetitivo. Os leitores deste Blog terão a sensatez de pular partes já abordadas por mim.

Advertência: Para os odientos de plantão, quero esclarecer que, nem de longe pretendo me comparar ao grande pensador francês, estou usando tão somente a ideia do título da entrevista.

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Defendo que Espiritismo e Doutrina Espírita são coisas distintas, embora estejam umbilicalmente ligadas.

Nota: todos os destaques no texto são meus.

O Espiritismo

O Espiritismo é o conjunto de fenômenos que ocorrem na Natureza desde sempre. E mais, a Natureza total na qual estão envolvidos, em tese, os multiversos físicos e os espirituais.

Eu que disse isso? Não. Foi Kardec, na conclusão de O Livro dos Espíritos. Veja:

O Espiritismo não é obra de um homem. Ninguém pode inculcar-se como seu criador, pois tão antigo é ele quanto a Criação. Encontramo-lo por toda parte, em todas as religiões [...] O Livro dos Espíritos, Conclusão, Item VI, parágrafo 3º.

Ora, se o Espiritismo é tão antigo quanto a Criação, ele só pode pertencer à natureza das coisas e não uma invenção, uma teoria humana.

A Doutrina Espírita

A doutrina espírita é uma teoria com a qual e pela qual Kardec tenta explicar aquele conjunto de fenômenos naturais chamado Espiritismo. Não se trata de uma ciência exata, por esta razão Kardec insistia em dizer que novas descobertas poderiam modificá-la sem prejuízo da ideia central – a existência do espírito, ou do mundo espiritual.

Diferentemente do Espiritismo, a Doutrina Espírita é datada – surgiu no século XIX com o lançamento do Livro dos Espíritos a 18 de abril de 1857. Já o Espiritismo remonta ao Big Bang[1].

A doutrina espírita é uma tentativa de explicar certos fenômenos nos quais a Ciência ainda não alcançou por conta das ferramentas que dispõe. Há quem discorde, mas o fato é que a Ciência não possui instrumentos para explicar a mente e a alma humana. Para a Ciência, mais especificamente a Biologia Evolucionista e a Neurociência, todos esses fenômenos poderão ser explicados por observações da rede neural. Acontece que essas ciências estão engatinhando e não podem afirmar categoricamente todas as faces da mente humana.

Isto não significa desqualificar a Ciência em favor da fé, mas de relativizar o conhecimento científico como dogma.

A moral espírita

A moral espírita vem das evidências desse mundo espiritual com as quais Kardec fez, desde o início de suas pesquisas, sobre as relações entre o mundo físico e o mundo invisível para nós. As consequências naturais dessa interação entre mundos é a ética que as contorna.

Defendo que, a moral decorrente da teoria espírita não se limita à moral cristã porque, para ser mais fiel à realidade total englobada pelo Espiritismo, a doutrina espírita não pode ser cristã em sentido estrito, portanto, ela deve ser universal.

Veja o que diz Allan Kardec, em dois pontos do livro citado acima:

Primeiro: Kardec chamou a base da doutrina espírita de “Filosofia Espiritualista” e não de “religião espiritualista”. Há uma diferença fundamental entre “filosofia” e “religião”, embora haja um ramo da filosofia que se debruce sobre o tema: a Filosofia da Religião. Essa informação pode ser observada na página de abertura de O Livro dos Espíritos, 4ª edição, onde o editor colocou “Philosophie Spiritualiste”. A tradução do francês para o português é intuitiva, dispensando explicação:

Segundo: Há dois momentos em que Kardec sinaliza que a Doutrina Espírita não é uma religião institucionalizada, embora não se oponha à fé religiosa:

A primeira está na parte II, capítulo 2 Da Encarnação dos Espíritos:

Haverá nisso alguma coisa de antirreligioso? Muito ao contrário, porquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais potente auxiliar da religião.

Acompanhe comigo: se o Espiritismo (leia-se Doutrina Espírita) é o mais potente auxiliar da religião, ela não pode ser uma religião em si, mas uma ferramenta poderosa para confirmar a tese central de qualquer religião – a metafísica, ou seja, a configuração de um mundo além daquele em que vivemos.

E por que “poderosa”? Porque não se limita à crença em algo não demonstrável, mas pela observação do fenômeno espírita com o qual Kardec trabalhou. É o que Kardec chamou de exercício de uma “fé racionalizada”. 

A segunda está num pequeno volume que Kardec publicou com o intuito de divulgar a Doutrina Espírita de forma mais concisa – O Espiritismo na sua expressão mais simples:

Como crença nos Espíritos, é igualmente de todas as religiões, assim como é de todos os povos, porque, em toda parte onde haja homens, há almas ou Espíritos; que as comunicações dos Espíritos são de todos os tempos, e que os relatos dessas manifestações se encontram em todas as religiões, sem exceção. Pode-se, portanto, ser católico, grego ou romano, protestante, judeu ou muçulmano, e crer nas manifestações dos Espíritos, e, por conseguinte, ser Espírita; a prova disso é que o Espiritismo tem aderentes em todas as seitas.

Se se pode ser católico, protestante, judeu ou muçulmano e, ao mesmo tempo, ser espírita, então a Doutrina Espírita não se configura como uma religião, mas confirma a tese de que ela é uma poderosa ferramenta para qualquer denominação religiosa.

É interessante observar que Kardec utiliza o termo “espiritismo” para designar a doutrina espírita. Como já demonstrado por mim, são coisas distintas, tanto que no mesmo trecho Kardec diz: as comunicações dos Espíritos são de todos os tempos, ou seja, faz parte da natureza das coisas, não foi uma ideia lançada em 18 de abril de 1857.

Doutrina Espírita e moral cristã

Há um debate dentro do movimento espírita sobre se o Espiritismo é cristão ou não. Mais uma vez, vamos a Kardec:

Como moral, ele é essencialmente cristão, porque aquela que ensina não é senão o desenvolvimento e a aplicação daquela moral do Cristo, a mais pura de todas, e cuja superioridade não é contestada por ninguém — prova evidente de que ela é a lei de Deus; ora, a moral é para o uso de todo o mundo. Sendo o Espiritismo independente de toda forma de culto, não recomendando nenhum e não se ocupando de dogmas particulares, não é uma religião especial, pois não possui nem sacerdotes, nem templos.

Neste trecho, do mesmo livro citado acima, Kardec enfatiza que “como moral”, a Doutrina Espírita é essencialmente cristã e independente e sem dogmas particulares, o que, no meu entendimento, trata-se de uma ferramenta e não de outra religião. Kardec está falando de ética cristã e não da religião cristã. Ficou claro isso?

Kardec reforça essa ideia em O Evangelho Segundo o Espiritismo, outro livro seu, quando diz que o estudo dos evangelhos teria como escopo “a moral transmitida pelo Cristo” desprezando o restante das narrativas.

Afinal, o Espiritismo é ou não é cristão?

Pelo exposto acima, poderíamos concluir que a Doutrina Espírita possui uma ética cristã que a embasa, mas o Espiritismo jamais poderia sê-lo, porque existe desde sempre e o Cristianismo surgiu na História há mais de dois mil anos.

Como o Espiritismo é o conjunto de fenômenos da natureza, considerá-lo cristão equivaleria a rotular uma bactéria de cristã, uma batata de cristã, uma figueira de cristã, um búfalo de cristão e assim por diante.

Por que Kardec adotou a moral cristã como bússola de nosso comportamento, se ele mesmo afirma que o Espiritismo existe desde sempre?

Porque Kardec era um homem de seu tempo: um ocidental, europeu e de formação cristã. Tivesse ele nascido na China, talvez sua visão de mundo teria sido outra. Todos nós estamos submetidos a uma boa dose de condicionamento psicológico vindo da cultura, da língua, dos costumes do lugar onde nascemos, crescemos e fomos “educados”. Kardec não foi exceção.

Abro um parêntese aqui, para dizer que, a meu juízo, ao ser importada para o Brasil – à época hegemonicamente católico – a doutrina espírita sofreu influências que descaracterizaram o projeto inicial francês. A influência de líderes espíritas, vindos do catolicismo adicionaram certas práticas não condizentes com a concepção kardequiana: Jesus adorado, caricato e mítico; uma certa adoração à Maria - mãe de Jesus, e o uso de expressões dengosas cheias de afetação que, a mim e um punhado de gente, chega ser nauseante.

Como disse Huberto Rohden num livrinho publicado pela Editora Martin Claret onde comentava o Tao Te King[2]: toda a obra humana original sofre mudanças ao longo do tempo; com o Tao Te King não foi diferente. Pego um gancho em Rohden para dizer o mesmo a respeito da Doutrina Espírita. Minhas críticas ao movimento espírita não tem a intenção de mandar para fogueira os valorosos companheiros com quem mantive amizades preciosas, nem de achar que sou a última bolacha do pacote – detentor da verdade e da justiça. Seria uma bobagem pensar assim.

Por todas as razões acima mencionadas, eu separo Doutrina Espírita de Espiritismo e evito utilizar esse último termo quando estou falando das circunstâncias históricas em que estamos submetidos.

Dúvidas, críticas, comentários serão bem-vindos.


[1] Big Bang: teoria da Astrofísica que concebe a criação do Universo a partir de uma grande explosão ocorrida, aproximadamente, há 14 bilhões de anos.

[2] Tao Te Ching ou Tao Te-King: obra do pensamento antigo chinês atribuída ao sábio Lao Tzu, de onde originou o Taoísmo.

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