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DOUTRINA ESPÍRITA E OS MITOS*

Fragmento da transcrição siríaca descoberta sob a luz UV
(Imagem: Divulgação/Biblioteca do Vaticano)

Fonte: https://olhardigital.com.br/2023/04/07/ciencia-e-espaco/transcricao-do-novo-testamento-de-1-7-mil-anos-e-descoberta/

*Mito é a área do conhecimento que estuda o conjunto de lendas, crenças de um povo. Mas é bom saber que os mitos abrangem campos importantes sobre o ser humano e vão muito além dessa pequena e rasa definição, como por exemplo, sua psique.

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Para ouvir o áudio, clique no link abaixo:

https://youtu.be/Fh6Vgp8icRc

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No texto “Esquecimento e Perdão” (link abaixo) eu notifico o leitor que, em post posterior, eu daria resposta a uma questão levantada por um companheiro.

https://espiritismosec21.blogspot.com/2023/03/esquecimento-e-perdao.html 

Tempos atrás, o Rubens - amigo e companheiro de estudos – indagou sobre a validade histórica dos textos bíblicos e se eu não correria o risco de me basear em fantasias criadas ao longo do tempo, uma vez que sempre os cito como referências em meus argumentos.

Vamos tentar responder ao caro amigo.

O conjunto de textos contidos naquilo que convencionou-se chamar de Novo Testamento, basicamente, começa com o nascimento de Jesus. Esses textos são um desafio para historiadores que procuram estuda-los e extrair deles o trigo que há no meio de tanto joio posto por inúmeras cópias, traduções, inserções, exclusões feitas ao longo dos séculos[1].

Portanto, cabe a esses pesquisadores e acadêmicos a não menos difícil tarefa de distinguir o que é histórico[2] do que é mítico.[3]

Além disso, não existem textos originais; todos eles se perderam. Existem achados arqueológicos importantes[4], fragmentos de textos antigos que ajudam os estudiosos a acharem algumas agulhas nesse palheiro, mas ainda há muitos hiatos no estudo historiográfico das origens do Cristianismo.

Aonde quero chegar?

Primeiro, a proposta do Blog é debater doutrina espírita. Uma das fontes para debate é O Evangelho Segundo o Espiritismo de Allan Kardec.

Segundo, mesmo que os textos evangélicos sejam cobertos de mitos, de contradições e narrativas bastante problemáticas, esse material não deixa de ser uma fonte rica para pensarmos a existência. Muita gente importante utilizou-se dos mitos gregos para compor suas teorias nos diversos campos do conhecimento. A mitologia, com sua rica simbologia, provoca reflexões e insights sobre nós. Isso é inegável. Freud buscou, nos mitos da antiga Grécia, material para compor sua teoria.

Mesmo que eu saiba que há muita coisa problemática nos textos evangélicos, eu me sirvo deles para discutir e comentar aquilo que Kardec propôs no livro acima citado. E não vejo problema nisso.

Ao compor o Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec preocupa-se em separar o que o texto neotestamentário oferece, de cunho moral, do restante. É minha tendência, também, fazer esse tipo de distinção, mas sem perder o interesse de entender a mítica por trás de algumas narrativas.

Não é difícil constatar que Kardec não obteve sucesso ao tentar separar os ensinos morais do Cristo do resto que considerou de menor importância, ou seja, aquilo que, nos textos, considero linguagem hiperbólica[5]. Essa linguagem hiperbólica tem uma complicada relação com o real; sobretudo no movimento espírita brasileiro.

Minha análise não tem a intenção de negativar o movimento espírita brasileiro, nem tenho cacife moral para isso. Minha análise é sistêmica.

Fico espantado com a postura de grupos espíritas que rechaçam qualquer tipo de estudo de mitos em nome de uma tal racionalidade doutrinária que, para mim, não passa de um ativismo reacionário à moda positivista, ao mesmo tempo que fazem palestras detalhando as colônias espirituais (?!). Um paradoxo!

Volto ao ponto: minha leitura do Novo Testamento passa pelos mitos, pela simbologia contida em suas linhas, bem como pelo histórico.

Se a doutrina espírita quiser defender uma bandeira de triplo aspecto[6], e se impor à fortuna crítica[7], terá de lidar com essa contradição e levar a discussão até as últimas consequências: não dá para aceitar o aspecto científico da doutrina ao mesmo tempo que, por exemplo, se fala da existência de Deus como se fosse algo simples de se provar. Quem leu Tilich vai ver que a crença na existência de Deus é problemática[8].

A visão do espírita sempre deverá ser plural para não morrer ou, na melhor das hipóteses, ser esquecida numa esquina qualquer da História.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1](Joio, em Botânica, é designação comum às plantas cujas espécies são conhecidas pelos frutos infestados por fungos, que prejudicam as plantações.

As palavras “joio e trigo” fazem parte das expressões articuladas por Jesus numa parábola registrada no evangelho de Mateus:

A parábola do trigo e do joio

24 Propôs-lhes outra parábola, dizendo: O Reino dos céus é semelhante ao homem que semeia boa semente no seu campo; 25 mas, dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou o joio no meio do trigo, e retirou-se. 26 E, quando a erva cresceu e frutificou, apareceu também o joio. 27 E os servos do pai de família, indo ter com ele, disseram-lhe: Senhor, não semeaste tu no teu campo boa semente? Por que tem, então, joio? 28 E ele lhes disse: Um inimigo é quem fez isso. E os servos lhe disseram: Queres, pois, que vamos arrancá-lo? 29 Porém ele lhes disse: Não; para que, ao colher o joio, não arranqueis também o trigo com ele. 30 Deixai crescer ambos juntos até à ceifa; e, por ocasião da ceifa, direi aos ceifeiros: colhei primeiro o joio e atai-o em molhos para o queimar; mas o trigo, ajuntai-o no meu celeiro.

Mateus 13:24-46. Almeida Revista e Corrigida 2009

[2] História é a ciência que estuda as ações humanas ao longo do tempo. O trabalho do historiador inclui uma análise minuciosa dos documentos que permitem o estudo do passado.

[3] Estou preparando um texto onde discuto essa combinação entre mítico e histórico na doutrina espírita e como eu me posiciono nessa questão.

[4] Os Manuscritos do Mar Morto é um desses achados da Arqueologia.

[5] A linguagem hiperbólica procura utilizar termos que provocam emoções mais fortes em seus leitores.

[6] É comum afirmarem que a Doutrina espírita tem 3 aspectos fundamentais: o aspecto filosófico, o religioso e o científico; e nela esses campos do conhecimento estão juntos e misturados. Convido o leitor à leitura da matéria do link abaixo:

https://espirito.org.br/artigos/o-triplice-aspecto-da-doutrina-espirita-2/

[7] Fortuna crítica refere-se ao conjunto de estudos de natureza acadêmica voltados para uma ou autor específico.

[8] Paul Tilich (1886-1965) foi um filósofo da religião. Faço, aqui, uma referência à sua famosa frase: Deus não existe. Ele é o próprio ser além da essência e da existência. Portanto, argumentar que Deus existe é negá-lo.

Em outras palavras: Deus não pode ser entendido como um ser que existe ao lado ou acima de outros seres, Deus não é um ser, Deus é o ser-em-si, e está além do essencial e existencial. Deus vai além de todo o ser, e além da totalidade dos seres, transcende o finito e o infinito. *

*Fonte:

https://www.metodista.br/revistas/revistasims/index.php/COR/article/viewFile/4603/4000#:~:text=Conforme%20Tillich%20(2011)%20Deus%20n%C3%A3o,o%20finito%20e%20o%20infinito.

 

Comentários

  1. E dá para abarcar Deus com os nossos recursos limitados? Não, o máximo que fazemos (toda a humanidade ou, quem sabe, muitos de nós) é criá-lo à nossa própria semelhança.

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  2. Faço minhas as palavras do seu companheiro de estudos, o Rubens, sem deixar de considerar como plausível sua pertinente explicação. Assim, ora desenvolvo um extenso trabalho bíblico, ao qual denominei "Do Jardim do Éden ao Mar da Galileia", em cujas páginas me deparo com lendas, mitos, contradições, dúvidas e interrogações, com pouca ou nenhuma comprovação histórica. Quanto ao restante do texto, me restrinjo a apreciá-lo e aprender, uma vez que não sou especialista no assunto, diferentemente de você, um estudioso da Doutrina Espírita. Meu afetuoso abraço.

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  3. Há de se considerar que os horizontes mentais do ser avançam conforme a estruturação de lidar com a realidade em si.

    Uma das categoria do pensar é a representação do real para apreende-lo; outra é a da simbologia, associação ou analogia para expressar este real. Jesus utilizou-se de parábolas para atingir a nossa psique espiritual.

    Tais etapas adquiridas têm o seu enorme valor. Contudo, com o aprimoramento da inteligência atinge-se a abstração, a reflexão. Não é mais exigência (tentar) reproduzir o metafísico, o que não significa deixar de perquirir o divino.

    Gosto de uma colocação do mitologista Joseph Csmpbell:

    "Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida."

    Uma das características do homo sapiens foi a capacidade de elaborar 'histórias' para a explicação do cosmo, da vida, entre outros. Segundo alguns estudos há uma hipótese de que tal habilidade deu sentido à existência, algo que o neandertais não desenvolveram, apesar de serem muito melhores caçadores. Em outras palavras, a força física não é sinal ou garantia de sobrevivência; já os laços comunitários tendo como base uma narrativa que os direcione psiquicamente dão suporte ao porquê das coisas serem como se apresentam.

    E estamos nós, nesse colóquio, olhando juntos para essas mundividências.

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