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ESQUECIMENTO E PERDÃO

A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.
O Livro do Riso e do Esquecimento, Milan Kundera

O esquecimento, frequentemente, é uma graça. Muito mais difícil que lembrar é esquecer! Fala-se de boa memória. Não se fala de bom esquecimento, como se esquecimento fosse apenas memória fraca. Não é não. Esquecimento é perdão, o alisamento do passado, igual ao que as ondas do mar fazem com a areia da praia durante a noite.

Rubem Alves

A vantagem de ter péssima memória é divertir-se muitas vezes com as mesmas coisas boas como se fosse a primeira vez.

Friedrich Wilhelm Nietzsche

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Revisitei o caso Aída Cury[1]. Assim como da primeira vez que tive contato com sua tragédia, me senti consternado; um pesar profundo. Minha memória gravou aquele caso horrendo de uma jovem assassinada por um psicopata e seus auxiliares.

É comum ouvirmos que o perdão é o esquecimento de uma falta cometida contra alguém. Seria como se o esquecimento fosse o adubo jogado no solo da alma para brotar o perdão.

A pergunta é: esquecemos ofensas a nós dirigidas? Conseguimos esquecer os créditos que temos em relação aos outros?

Ubiratan Rosa fala que somente somos capazes de perdoar àqueles que desprezamos, porque aqueles a quem temos grande consideração, caso nos ofendam, será muito difícil esquecer a ofensa pela importância do ofensor.

Para entender a afirmação de Rosa, uso da estratégia negativa que é a seguinte: só odiamos àqueles a quem nutrimos grande importância.

As pessoas pouco ou nada relevantes para nós, as desprezamos sem conseguirmos nutrir ódio por elas. Lembrando que o desprezo é primo-irmão da indiferença. É como se aquela pessoa desprezível não merecesse a perda de nosso tempo em odiá-la. Quando odiamos, não conseguimos ser indiferentes ao objeto de nosso ódio exatamente pela importância que damos a ele.

Neste passo, cabe refletir sobre três passagens em que Jesus fala de perdão:

Primeira: quando diz a Pedro que temos de perdoar não somente sete vezes, mas setenta vezes sete vezes. Muita gente, de espírito pragmático, costuma fazer a seguinte conta: não quer mais conviver com alguém, então diz: já te perdoei 490 vezes (70 vezes 7 vezes), então estou quite com você. Tchau. Xô!

Obviamente, não era dessa forma tão matemática assim a que Jesus se referia. Na verdade ele reportava (ou disseram por ele[2]) ao Velho Testamento[3] onde Deus adverte: aquele que matasse Caim receberia um castigo sete vezes maior do que recebera o próprio Caim. Desgraça pouca seria bobagem no caso do infeliz que matasse o fratricida.[4]

Quando Jesus responde a Pedro que deveria perdoar 70 vezes 7 vezes, ele transmutava a ameaça externa em uma conduta interna, uma disposição íntima de perdoar sempre. Pedro deve estar cismado até hoje com a resposta do mestre (risos). Para nós, mortais, Jesus era um chato mesmo!

Segunda: quando ensina os discípulos a orar, há uma passagem no Pai Nosso em que ele diz: perdoai nossas dívidas assim como perdoamos aqueles que nos devem.

Jesus conhecia bem a nossa natureza egoísta. Não foi à toa que ele põe em xeque os nossos propósitos mais íntimos. Primeiro dizendo que com a mesma medida que medimos o nosso semelhante, também seremos medidos. Segundo, é o entendimento do verbo perdoar[5]. O verbo perdoar é composto por dois elementos: o prefixo “per” e o verbo “doar”. “Per” significando totalidade + “doar” que aqui assume o significado de “dar”. Então, Jesus está nos dizendo que quando orarmos, devemos pedir a Deus que nos dê o conhecimento cabal, inteiro, integral de nossas dívidas assim como temos o mesmíssimo comportamento com aqueles que nos devem.

Perceberam o tamanho da encrenca?! Estou falando que Jesus é um chato e ninguém acredita (risos).

Terceira: Quando Jesus, já crucificado, diz – referindo-se aos que o condenaram e aos que o agrediam enquanto ele agonizava: Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem.[6]

Fica claro que a condição primeira para que alguém obtenha o perdão é a ignorância. Aqui cabem algumas perguntas: qual é o tamanho de nossa ignorância? Como saber se o outro está errando por ignorância? Temos ferramentas suficientes para saber da ignorância do outro, ou estamos condenados a ignorar a ignorância alheia e a nossa própria?

Sócrates – considerado um sábio de seu tempo – teria posto uma pulga atrás de nossa orelha ao declarar: que tudo que sabia era que nada sabia[7].

Nessa condição, é melhor desarmar o espírito e perdoar sempre, dentro de nossas possibilidades ou esperar o desencarne para beber a água do rio Lete[8].

Caso contrário: passes, preces, novenas, oferendas em encruzilhadas, encontros em grupos de meditação, águas fluidificadas ou bentas, evangelho no lar, visitas constantes aos confessionários e psicanálise ajudam, mas não resolvem.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] O caso Aída Cury abalou a sociedade brasileira pela crueldade com que foi morta, em 14/07/1958. A família dela entrou na Justiça com um pedido de “direito ao esquecimento”, mas o STF negou o pedido em sessão plenária no dia 11/02/2021.

[2] Alguém já me interpelou sobre essas minhas referências bíblicas perguntado se essas afirmações estão bem documentadas ou trata-se de fantasias, invenções etc. Esse assunto vai para outro momento.

[3] Para os cristãos a Bíblia é dividida em 2 grandes blocos: o Velho Testamento dedicado à tradição judaica propriamente dita e o Novo Testamento dedicado à vida de Jesus e seus discípulos. A passagem apontada por mim está em Gênesis capítulo 4, versículo 15 (Gênesis é o primeiro livro do Velho Testamento) onde está registrado: O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será castigado. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse.

[4] Fratricida é aquele que mata o próprio irmão; por extensão, pode ser entendido como responsável pela morte de semelhantes. Pelo texto bíblico, Caim matou o seu irmão Abel por ciúme. Alguns interpretam o castigo severo prometido por Deus a quem matasse Caim como forma de conter a violência entre irmãos. Parece que essa fórmula divina não deu muito certo.  É só frequentar audiências nos tribunais onde se debatem os termos de separação de bens, por exemplo. Ameaças não reprimem a barbárie.

[5] Essa interpretação não é minha, mas de Ubiratan Rosa em seu ensaio Notas à margem do Pai Nosso.

[6] Evangelho de São Lucas, capítulo 23, versículo 34.

[7] Sócrates: filósofo ateniense que viveu no século IV a.C.

[8] Na mitologia grega o Rio Lete ou rio do esquecimento é um rio do Hades – submundo, e quem bebesse de suas águas esquecia-se completamente do passado.

Comentários

  1. Acabo de me enxergar no seu texto ( como em tantas outras vezes)...e mais uma vez, admiro Rosa também...
    Ainda nesta semana ouvi de alguém: melhor perdoar e resolver nesta vida, do q voltar com a mesma fulana! Q medo...
    Mas, aí penso: não tenho o q perdoar...pq tanto faz...
    Como disse, me enxerguei no texto! E como sempre que te leio ou ouço, assento meus pés e percebo que não sou perfeita...tenho a eternidade para aprender...ufa!

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  2. Obrigado querida companheira de caminho. Vamos em frente.

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  3. Perdoar... tá aí uma coisa difícil, que acho que o perdão verdadeiro, ninguém consegue....

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  4. Concordo com a Ana Carolina sobre a dificuldade de sentir que o que nos fizeram e nos feriu física ou emocionalmente foi perdoado. Incluo aqui o auto perdão, pois podemos igualmente ferir a outros e a nós mesmos. Acredito que o perdão acontecerá na presença da compreensão da natureza das coisas e das pessoas, de como se movimentam sentimentos e emoções e de quanto podemos ver a vida numa longa perspectiva. Excelentes considerações suas, Humberto!

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  5. Meu comentário acima

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  6. Obrigado Mônica por suas considerações. Vamos refletindo...Abraço afetuoso

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  7. Tenho a impressão que estamos ainda no nível das 'desculpas', de tirar a culpa de quem tenha nos ofendido ou magoado.

    O perdão é muito mais profundo, pois exige uma maturidade emocional para ofertá-lo.

    Esquecer, só se for pela reencarnação. Os pressentimentos permanecerão, mas a reparação há de limpar a(s) marca(s) do ontem.

    "Antes de tudo, exercei profundo amor fraternal uns para com os outros, porquanto o amor cobre uma multidão de pecados." - 1 Pedro 4:8.

    O que faz lembrar do "amar aos inimigos"... Lição difícil de exercitar.

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  8. Concordo que não tenho dificuldade em perdoar aquele pelo qual sinto total (ou parcial) indiferença. Dito de outra maneira, e em total consonância com você, irmão Humberto, ainda não alcancei um nível de maturidade, "bondade" ou "santidade" para perdoar a quem, no estrito âmbito das juras eternas, fez mais do que decepcionar minhas expectativas.

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