Pular para o conteúdo principal

ENCARNAÇÃO E TEMPO

"Ando com fome de coisas sólidas e com ânsia de viver só o essencial. Leia o "Time must have a stop", de Huxley. Pessoalmente, penso que chega um momento na vida da gente, em que o único dever é lutar ferozmente por introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de "eternidade"."[1]

++++++++++++++++

Logo no prefácio à edição brasileira do livro ACELERAÇÃO – A transformação das estruturas temporais na modernidade Hartmut Rosa[2] vai lançar as seguintes perguntas:

O que é uma boa vida?

E o que nos impede de levar essa vida?

Por que a vida é sentida, tanto na Europa quanto na América Latina, tanto na Ásia quanto na África, apesar de todo o progresso técnico e de todo o bem-estar conquistado, mesmo entre as relativamente afortunadas classes médias, como uma luta diária?

Por que as pessoas sentem-se como hamsters numa roda girada sempre mais velozmente, na qual o mundo se lhes opõe como uma lista de afazeres sempre mais longa, a qual só podem manejar sob o modo da agressão [Aggressionsmodus]?

Essas eram as questões que me estimulavam quando da redação deste livro. Uma vez que nos ocupemos com o problema da escassez e com o desejo de afluência temporal, inevitavelmente colocam-se tais questões, pois como queremos viver é apenas uma outra expressão para a pergunta: como devemos dispor de nosso tempo?

++++++++++++++++++++

Quando o espírito encarna é como se mergulhasse no oceano do tempo cronológico. O relógio dispara e tudo o que se fizer não terá como voltar atrás. Em si, não existe tempo negativo a não ser para a Física quando se toma como ponto de partida um referencial.

Millôr Fernandes dizia que viver é desenhar sem borracha.

Percebe o tamanho da encrenca?

De novo, a vida na Terra não é para amadores.

Para alguém como eu que carrega uma boa dose de pessimismo trágico[3], quando encarnamos nos pomos dentro de uma máquina de moer carne[4]. E é aí que entra o espírito estoico.

O Estoicismo[5] poderá nos ajudar nessa empreitada contra aquilo que chamo de “entropia existencial”[6]. O foco principal, enquanto aqui estivermos, será no sentido de nos mantermos vivos e ativos dentro de nossas possibilidades com as ferramentas ao nosso alcance. Pular etapas, pegar atalhos, fugir da raia[7] vai “dar ruim”.

Via de regra, quando encarnamos há um apagamento da memória – melhor dizendo, há um bloqueio mais ou menos extenso da vida psíquica passada. Tateamos na escuridão do esquecimento do passado e recomeçamos com um disco rígido no qual se depositarão os dados de uma nova experiência existencial. E mesmo que lembrássemos de nosso passado espiritual, o contexto seria outro. Por exemplo, 30 anos atrás não existiam redes sociais, celulares, o ZAP. Quem encarna hoje não faz a mínima ideia do que é escrever uma carta em papel, envelopar, selar e colocar nos correios para receber resposta, na melhor das hipóteses, depois de um mês.

E onde entra o trágico?

Entra no processo consciente do morrer. Apesar de nosso foco principal ser a sobrevivência pura e simples – que já é uma tragédia, nós humanos, acrescentamos valores simbólicos muito caros para nossa manutenção psíquica e que, tragicamente, muitos desses valores viram pó com a morte.

É complicado lidar com aquilo que é provisório. Há um ditado iídiche[8] que diz:

Na porta do sucesso está escrito “entrada” e “saída”.[9]

É oportuno citar Guimarães Rosa novamente:

"Vida - coisa que o tempo remenda, depois rasga."[10]

Resta a pergunta: o que temos feito do tempo disponível?

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] João Guimarães Rosa, em carta a Antonio Azeredo da Silveira, Rio de Janeiro, 27-X-45. In: "SILVEIRA, Flavio Azeredo da.(org.). 24 cartas de João Guimarães Rosa a Antonio Azeredo da Silveira.

[2] Hartmut Rosa: sociólogo alemão (1965- )

[3] A aceitação trágica da vida por Nietzsche se deve à sua completa negação do plano metafísico, mas isso não desautoriza qualquer um que se debruce sobre a Metafísica ou que dela tem por base (no caso de ser um espírita), porque há muita coisa interessante dentro do pensamento trágico de Nietzsche e precisamos aproveitar essa fonte rica de informações e reflexões feitas por outra visão de mundo.

[4] Alguém dirá que copiei essa expressão do filósofo Luiz Felipe Pondé, mas isso não é verdade porque escrevi esse texto antes que ele a utilizasse em artigo publicado em 17/04/2023 na Folha de São Paulo com uma pequena diferença: ele fala em máquina de moer gente – que dá no mesmo.

[5] Corrente filosófica de origem grega, e que se destacou pelo pensamento de filósofos romanos defende, em reduzidíssima expressão, a ideia de ATARAXIA: ausência de inquietude, de perturbação diante dos desafios da vida.

[6] entropia (S) é uma grandeza termodinâmica que mede a desordem de um sistema e a espontaneidade dos processos físicos. Quanto maior a desordem do sistema, maior a entropia.

[7] Gosto de usar expressões populares; soa menos petulante. Neste caso “fugir da raia” ,para quem não sabe, significa fugir do problema, fugir de uma situação pouco confortável.

[8] Iídiche é uma língua derivada do alemão falada por judeus.

[9] Nilton Bonder, A Cabala da Comida, do Dinheiro e da Inveja, Editora Imago

[10] João Guimarães Rosa, em "Estas Estórias". Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967.

 

Comentários

  1. O que temos feito do tempo disponível!?!
    Cada um responde por si, segundo as próprias... intenções.

    Indubitavelmente cada ser escreve uma nova página nessa "encadernação" existencial.

    Alguns épicos, líricos.
    Outros dramáticos, cômicos.
    Românticos, aventureiros, fantasiosos.
    A ênfase depende das circunstâncias.

    Como diria Agostinho, vivemos na Terra como ensaio para saber viver na eternidade.

    Executemos com proveito aqui o planejamento reencarnatório de lá.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

CORONAVÍRUS E A TRANSIÇÃO PLANETÁRIA

Depois da espanhola [1] e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão. A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia. Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 13/04/2020 Por mais hedionda seja a figura de Joseph Goebbels [2] recentemente foi elevada ao status de máxima da sabedoria sua frase: “uma mentira contada muitas vezes acaba se tornando uma verdade”. É óbvio que se trata de uma armadilha, de um sofisma. No entanto, é plausível que se pense no poder dessa frase considerando como uma verdade baseando-se na receptividade do senso comum,   independentemente de cairmos no paradoxo de Eubulides ou de Epimênides [3] . H

O INFERNO E A QUARENTENA

Há uma peça para teatro escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre intitulada “Huis Clos” mais conhecida entre nós pelo título “Entre Quatro Paredes” onde Sartre explora, entre outros, o tema da liberdade – tema tão caro ao pensamento desse filósofo. A peça é encenada em um apartamento que simboliza o Inferno onde três personagens interagem com a figura de um quarto – o criado. Não interessa aqui explorar a peça em todas as suas complexidades, mas de chamar a atenção para a fala do personagem Garcin que, ao fim da peça, exclama: “o Inferno são os outros”. Há quem diga – gente com repertório imensamente maior do que o meu -, que devemos entender que “os outros” não são o inferno, mas nós é que somos o inferno. [1] Esse tema traz muitas inquietações àqueles que pensam a vida de forma orgânica, não simplista. Meu palpite é que a frase de Garcin confirma para mim o que desconfio: que os outros são o inferno, porque o outro, a quem não posso me furtar da companh

PAUSA PARA OUVIR - Chopin 2

Frédéric François Chopin 01/03/1810 - 17/10/1849 Piano Concerto No.1, Movimento 2 - Largo, Romance

Tempus Fugit - Rubem Alves

O que me motivou a homenagear o "Seu" Ary imediatamente à sua morte, deve ter sido inspirado no texto que segue abaixo somado à gratidão guardada vivamente em minha alma. Não sei, mas posso ser punido por publicar crônica de autoria de Rubem Alves Tempus Fugit , Editora Paulus, 1990, mas valerá o risco. TEMPUS FUGIT Rubem Alves Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas. De dia, tudo era luminoso, mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar e suas mús

A REDENÇÃO PELO SANGUE DE UM CAVALO

No último texto postado falei do “sangue de barata”. Desta vez, ofereço-lhes um texto o qual tive contato pelo meu filho Jonas no fim dos anos 90. A autoria é de Marco Frenette. Nele, Frenette fala do poder do sangue de um cavalo. Nota: o tamanho do texto foge do critério utilizado por mim neste espaço que é o de textos curtos para não cansar   a beleza de ninguém. CAVALOS E HOMENS Marco Frenette Revista Caros Amigos, setembro 1999. Essa short cut cabocla está há tempos cristalizada na memória coletiva de minha família, e me foi contada pela minha avó materna. Corria o ano de 1929 quando ela se casou, no interior de São Paulo, com o homem que viria a ser meu avô. Casou-se contra a vontade dos pais, que queriam para a filha alguém com posses compatíveis as da família, e não um homem calado, pobre e solitário, que vivia num casebre ladeado por uns míseros metros quadrados de terra. Minha avó, porém, que era quase uma criança a época, fez valer a força de sua personal

A QUEIMA DO "EU"

Estimado Humberto, o feliz destaque "[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do "eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a "[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do "eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência" (Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador? Samuel Prezado irmão Samuel, obrigado pela sua companhia. É uma honra tê-lo aqui. Sem dúvida há uma relação entre Nietzsche e

PAUSA PARA OUVIR - Rameau

Jean-Philippe Rameau 25/09/1683-12/09/1764 https://www.youtube.com/watch?v=fbd5OAAN64Y

BUSCA

Somos humanos, demasiadamente humanos [1] e nossa humanidade baseia-se na linguagem. Isso é evidente. Qualquer tipo de busca, por exemplo a “humildade”, está fadado à frustração. A busca pressupõe algo vindo da razão e esta tenta criar conceitos em tudo o que busca. A razão utiliza o artifício da comparação e os afetos não funcionam assim. Toda vez que me comparo com alguém, na verdade estou comparando algo que conheço pouco – eu mesmo, com algo que não conheço nada – o outro. Mas o conceito vem carregado de cultura, e a cultura é produto da linguagem, e a palavra é o tijolo da construção conceitual, nunca a coisa em si. Enquanto a razão busca a palavra “humildade” que é intenção, a vivência é o gesto. E sabemos, segundo Rui Guerra: há distância entre ambos. [2] . Enquanto a vida é vertiginosamente dinâmica – tudo que é agora, não será o mesmo no segundo seguinte, a palavra é a tentativa de manter-se aquilo que escapa por entre os dedos; é a esperança angustiada de eternizar-s