É lei da Natureza a desigualdade das condições sociais?
Resposta: Não;
é obra do homem e não de Deus.
O Livro dos
Espíritos. Allan Kardec.
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CRÔNICA SOBRE DESIGUALDADE
Vi, outro dia, um anúncio de apartamentos à venda no Jardim Europa, em São Paulo. Unidades de 339 a 637 metros quadrados. O edifício, diziam, está “debruçado sobre o verde do Jardim Europa”. Bonito, quase poético. Mas senti um quê de amargo na boca.
O que me atravessou naquele momento não foi inveja pura, tampouco ódio à riqueza. Foi o gosto seco da desproporção. Um desconforto que não vem de vitimismo, mas da constatação clara — e dolorosa — de que o abismo entre ricos e pobres não apenas persiste, como se alarga, dia após dia, ano após ano. Um abismo que nós, humanos, cavamos com as próprias mãos.
Caridade, me desculpem os bem-intencionados, não vai resolver. Muito pelo contrário. A caridade, quando desvinculada do senso de justiça, tende a manter tudo como está. É a válvula de escape que permite que os andares de cima sigam intactos enquanto os de baixo afundam mais. Outras saídas devem ser postas na mesa.
A realidade é dura: a concentração da riqueza é cada vez mais obscena. Um punhado de pessoas acumula bilhões enquanto multidões tentam, em vão, alcançar um pouco de dignidade. Nem babuínos vivem assim. Nenhuma espécie, em sua organização social, criou tamanha distância interna entre seus membros. Naturalizamos esse quadro disforme como quem desistiu de olhar.
Ao ver o anúncio, me perguntei: seria isso indignação ou inveja? Não sei. Talvez ambos, juntos e misturados. Afinal, cresci sob o bombardeio contínuo do marketing do sucesso, da felicidade comprada em parcelas, da ostentação como mérito.
Quantas vezes, quando
criança, diante de vitrines de docerias com o olhar fixo, salivando sem saber
por que meus pais nelas nunca entravam.
Os neoliberais de plantão diriam que meus pais não foram suficientemente capazes de empreender por falta de vontade. Ou, no pior dos cenários, que eram preguiçosos, gente que vivia de favores, de programas sociais.
A esses – gerentes do Mercado - respondo com a imagem viva da minha mãe: mesmo quando o corpo já não respondia a simples comandos, bem velhinha com as mãos e pernas parecendo galhos de uma árvore ressequida pelo peso dos anos, fazia questão de preparar café para as visitas e arrumar a mesa com carinho. Nunca a vi inerte, jamais a vi esperando a morte como quem se rende.
E
minha mãe era de origem europeia, olhos verdes como esmeraldas. Imagino o que
não sofreram — e ainda sofrem — tantos descendentes de africanos e povos
originários, carregando na pele, nos traços, a marca do preconceito. Gente
rotulada como vagabunda apenas por existir fora do ideal eugênico de brancura e
riqueza. Gente à margem, sob o peso do descrédito, da indiferença e da
violência simbólica e concreta.
E é então que, nesse turbilhão de lembranças e pensamentos, imagino os olhos da minha mãe. Olhar doce e firme que parece me dizer: Não desista. Vá em frente sem temor de derrotas que, inevitavelmente, ocorrerão. A vida é desafio. Eles estão confusos e angustiados.
Talvez
ela tenha razão. Talvez estejamos todos perdidos num jogo que não entendemos
direito, repetindo discursos que nos ensinaram, defendendo privilégios que não
nos pertencem, culpando os de baixo para não termos que olhar para cima.
Mas é preciso olhar. E é preciso falar. Nem que seja por meio de uma crônica.
Difícil?
Quem disse que seria fácil?
A crônica expõe, com sensibilidade, que a desigualdade social não é uma fatalidade natural, mas uma construção histórica mantida por escolhas humanas. Como ensina O Livro dos Espíritos (q. 806), ela “é obra do homem, e não de Deus”. Naturalizar a concentração de riqueza é compactuar com a injustiça. É hora de encarar esse abismo.
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