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PENSAR E COÇAR

Não tenho a obrigação de resolver as dificuldades que crio. Talvez minhas ideias sejam sempre um tanto díspares, ou até pareçam se contradizer entre si, basta que sejam ideias onde os leitores encontrem material que os incite a pensar por eles mesmos.

Gotthold Lessing[1]

Citado por Mateus Braga Fernandes

Resenha de Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início. Autoria de Eduardo Jardim.

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Faço das palavras de Lessing as minhas.

Não tenho a pretensão de doutrinar ninguém. Tenho, sim, vivo interesse de que as pessoas leiam o que escrevo de maneira atenciosa e interessada e as discutam dentro de perspectiva de investigação.

O espírito investigativo é muito importante dentro em um centro espírita, ou deveria ser.

Se temos um corpo doutrinário pensado e escrito na obra de Kardec, isso se deve, sem dúvida nenhuma, àquele espírito investigativo.

Ficar na superfície não é pecado. A alma não vai queimar no inferno por conta dessa superficialidade – muitas vezes motivada pelas próprias condições do sujeito e forçada pelo meio onde vive e ao acesso que teve aos bancos de escolas que, verdadeiramente, oferecem um ensino de qualidade.

Entretanto, é de responsabilidade daqueles que tiveram acesso a boas condições de escolaridade e de recursos materiais para conhecerem ferramentas importantes de autonomia e liberdade[2].

Lamentavelmente, o que vemos nas casas espíritas e em palestras é uma pregação unidirecional[3] com forte viés dogmático e, pior, com referências de baixa qualidade intelectual e nenhum estímulo investigativo.

Por quê? Porque investigar exige dúvida metódica[4] e a divulgação da doutrina espírita tem sido feita em bases dogmáticas, isto é, alguém com grande capital simbólico, alimentado pela exibição megalomaníaca de títulos acadêmicos e/ou possuidor de um aparelho mediúnico acima da média que impressionam a massa boquiaberta e ignorante previamente preparada para aceitar, sem levantar questionamentos, as “lições” passadas pelos “mestres” como num giro ao passado da Idade Média onde se costumava dizer “magíster dixit”.[5]

Nota importante: é óbvio que encontramos gente com conteúdo e grande capacidade de comunicação, mas são exceções onde deveria ser regra dada a característica implícita do estudo de doutrina espírita e sua dimensão universalista.

O que temos neste processo é: de um lado, os gurus da espiritualidade que vomitam regras morais, prevendo grandes expiações – como, por exemplo, a transição planetária e o degredo dos infelizes desobedientes – e, de outro, a massa trêmula de medo que tenta, a todo custo, pagar o amargo dízimo do recalque das pulsões[6] buscando a salvação.

No mundo contemporâneo em que as relações são líquidas[7], um forte espírito narcisista[8], com propaganda pesada de que você pode ser um vencedor no meio de uma multidão de vencidos – é o estímulo mais que perfeito para a vaidade e para o instinto de sobrevivência de fundo[9], como aquelas mensagens vindas dos profetas espíritas são recebidas?

Outra pergunta: o que você acha que vai acontecer?

Arrisco duas possibilidades: aumento da hipocrisia sadomasoquista religiosa falso-positiva[10] ou aquilo que Thomas Hobbes concluiu: uma guerra de todos contra todos[11].

Haja ansiolíticos.

Como eu disse no começo deste texto, minha expectativa é que você possa pensar em tudo isso com a mesma liberdade de concordar, também de discordar. E pensar e coçar é só começar.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Gotthold Ephraim Lessing foi um poeta, dramaturgo, filósofo e crítico de arte alemão, considerado um dos maiores representantes do Iluminismo alemão, conhecido também por sua crítica ao antissemitismo e defesa do livre-pensamento e tolerância religiosa.

[2] "A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, mais ainda será pedido." (Lucas 12:48) Àquele que teve contato com o conhecimento cobra-se o ônus da responsabilidade.

[3] Uma pregação unidirecional é aquela em que o pregador fala e os ouvintes apenas escutam, sem diálogo ou participação ativa. Ela segue um modelo vertical e autoritário, no qual a comunicação flui em apenas um sentido — do púlpito para a plateia — sem abertura para questionamentos, interações ou trocas de experiências.

[4] Dúvida metódica é um procedimento filosófico em que se procura o conhecimento verdadeiro através da sequência de questionamentos lógicos. Método criado por René Descartes.

[5] Na Idade Média, magíster dixit (“o mestre disse”) expressava a autoridade absoluta dos mestres, especialmente Aristóteles, cujas ideias eram consideradas verdades incontestáveis. Esse princípio refletia a confiança cega na tradição e na autoridade. Questionar o mestre era visto como heresia ou erro.

[6] O recalque das pulsões é um conceito da psicanálise que se refere ao ato de afastar desejos ou impulsos inconscientes que brotam no consciente, porque são considerados inaceitáveis ou ameaçadores. Esses conteúdos reprimidos continuam a atuar no inconsciente, influenciando pensamentos, emoções e comportamentos.

[7] Relações líquidas é um conceito do sociólogo Zygmunt Bauman que descreve os vínculos afetivos e sociais frágeis, instáveis e descartáveis na modernidade líquida. No mundo contemporâneo, as conexões tendem a ser superficiais e de curta duração. As pessoas evitam compromissos duradouros por medo da perda de liberdade ou frustração.

[8] O espírito narcisista é caracterizado pelo excesso de foco em si mesmo, necessidade constante de admiração e dificuldade de reconhecer ou valorizar o outro. Busca-se autoafirmação, sucesso e aparência acima de vínculos profundos. No fundo, esconde-se uma fragilidade interna camuflada por autossuficiência.

[9] O espírito de sobrevivência de fundo no ser vivo refere-se a um impulso básico e persistente de continuar existindo, mesmo diante de adversidades extremas. É uma força instintiva, anterior à razão, que guia reações de autopreservação. Atua como base silenciosa da vida, sustentando-a mesmo sem consciência plena.

[10] A hipocrisia sadomasoquista religiosa falso-positiva descreve uma postura religiosa em que, sob uma aparência de bondade, fé e positividade constante, esconde-se um desejo inconsciente de punir ou ser punido (sadomasoquismo), disfarçado por atitudes supostamente virtuosas. Essa hipocrisia é "falso-positiva" porque simula luz, amor e perdão, mas opera com culpa, repressão e controle moral, muitas vezes negando os próprios conflitos internos.

[11] Thomas Hobbes, ao falar em "guerra de todos contra todos", descreve o estado de natureza onde não há leis nem autoridade comum. Nesse cenário, cada um age por instinto de autopreservação, levando ao caos e à insegurança. Para evitar isso, Hobbes defende a criação de um Estado forte que garanta a paz.

Comentários

  1. Confesso que o texto cutuca – no melhor sentido da palavra. Crítica direta e bem fundamentada à forma como muitos centros espíritas têm lidado com o conhecimento: trocando o espírito investigativo por discursos prontos e doutrinadores. Chama atenção para o perigo de uma fé sem reflexão, onde poucos "mestres" detêm o saber e muitos apenas absorvem, sem questionar.
    Em torno irônico, sempre com um propósito claro: despertar o leitor para a importância de pensar por conta própria. A comparação com práticas medievais, como o famoso "magíster dixit", é um alerta poderoso contra o comodismo intelectual. No fundo, o texto é um convite – e um desafio – para que a gente saia da superfície, duvide, investigue e recupere a autonomia do pensamento. E como ele bem diz: pensar e coçar é só começar. Difícil? Sim. Mas necessário.

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