Inspiro-me no vídeo de Flávio Ricardo Vassoler intitulado “O que Kardec diria a Ivan Karamázov?” — uma pergunta que vai muito além do mero exercício intelectual.
Ivan
Karamázov, personagem d’Os Irmãos Karamázov de Dostoiévski, representa a
consciência ferida que, diante da crueldade absurda do mundo, recusa-se a
aceitar uma realidade onde o sofrimento — sobretudo o das crianças — é o preço
da harmonia divina. Sua revolta o leva a um gesto simbólico: “devolver a Deus o
bilhete de entrada no mundo”.
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Esse
gesto extremo nos convida a uma reflexão ética radical: o espiritismo, tal como
o compreendemos hoje, é capaz de enfrentar essa dor sem cair no conformismo ou
na justificativa fácil do “carma” e das “provas necessárias”? Ou temos nos
contentado com explicações reconfortantes que pouco dialogam com a gravidade do
mal e do sofrimento real?
A pergunta de Vassoler nos desafia a ir além da doutrina explicativa e adentrar o terreno da consciência ética. O que Kardec diria a Ivan? Talvez dissesse que o sofrimento tem causa e sentido. Mas, teriam os kardecistas a coragem de, antes de explicar, escutar o grito — e se comover com ele?
Nesse ponto, a espiritualidade não pode ser uma anestesia. Precisa ser presença viva diante da dor do outro. Se o espiritismo quiser manter sua relevância moral, precisará assumir, como tarefa urgente, não apenas o consolo, mas também o compromisso ético com a indignação e a responsabilidade diante do sofrimento humano.
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Para
a cartilha espírita e para muitas religiões, uma vida virtuosa é entendida como
aquela conduzida dentro dos limites estabelecidos pelas doutrinas, mesmo diante
das mais cruéis tragédias, como o extermínio de crianças em guerras motivadas
por interesses questionáveis. Essas tradições, no entanto, exigem de nós uma
resignação silenciosa diante dessas injustiças.
Essa
resignação é silenciosa porque, segundo esses sistemas religiosos, os horrores
do mundo estariam subordinados à chamada “vontade de Deus”, e duvidar dessa
vontade seria um ato temerário; revoltar-se contra ela, ainda mais perigoso.
Porém, Albert Camus nos oferece uma perspectiva ética diferente, ao afirmar que a revolta é, em si, um ato moral. Em outras palavras, torna-se antiético permanecer indiferente ou conformado diante das injustiças e sofrimentos que nos cercam. A ética, portanto, exige indignação e ação, não silêncio e aceitação passiva.
A indignação, por si só, não basta. É preciso que ela se converta em ação concreta — e, idealmente, em ação não violenta, sustentada pelo poder da argumentação e por práticas que realmente provoquem transformação. Esse engajamento pode se expressar também por meio do voluntariado e do apoio financeiro a instituições que atuam com seriedade nos campos social, educacional, artístico e na construção de horizontes utópicos.
O oposto também precisa ser dito: quando essas ações não nascem de uma indignação genuína, tornam-se apenas instrumentos da vaidade — meios para conquistar visibilidade, status e aprovação social, esvaziadas de real comprometimento.
O espiritismo tal como se consolidou no Brasil carrega um viés conformista, muitas vezes em nome de uma obediência passiva, marcada por um cristianismo domesticado que serviu, e ainda serve, para acomodar as consciências diante das desigualdades e das estruturas de poder. Apesar do esforço daqueles que promovem uma visão dogmática e religiosa do espiritismo, é preciso lembrar: Jesus não foi um pacificador da ordem vigente — não era resignado e tampouco prometeu conforto a quem escolhesse segui-lo. Ao contrário, sua presença foi subversiva, desafiadora e profundamente política.
Até que ponto nós, espíritas, estamos dispostos a romper com a neutralidade e a nos indignar, de forma consciente e ativa, diante das injustiças que estruturam a sociedade? Quantos de nós conseguimos enxergar os conflitos que atravessam nossas vidas como expressões de desequilíbrios coletivos — políticos, econômicos e sociais — que exigem mais do que compaixão: exigem posicionamento claro, coragem crítica e engajamento transformador?
A
proposta filosófica do espiritismo — aquela que buscava unir razão e
espiritualidade, como pretendia Kardec — perdeu-se quase por completo. Em seu
lugar, consolidou-se uma prática que, embora bem-intencionada, se limita a
rituais e respostas prontas, com raros espaços dedicados à investigação honesta
dos fenômenos e das grandes questões humanas.
Num
país como o Brasil, profundamente desigual, não deveríamos perguntar: qual o
verdadeiro papel dos centros espíritas? Até hoje, o que se vê, em grande parte,
é uma sequência previsível: passe, prece, palestra, evangelho no lar, ações
assistenciais — tudo sob a égide de uma “disciplina” que desestimula a dúvida,
a crítica e a busca interior real.
O
resultado é um espiritismo que pouco transforma. Que consola, mas não desperta.
Que ampara, mas não confronta.
Não falo isso com julgamento, mas com tristeza. Cresci nesse meio, formei-me nele, tenho amigos queridos que seguem nesse caminho. Algo dentro de mim me obriga a reconhecer que o movimento, em sua forma atual, parece ter perdido parte essencial de sua alma.
Paralelamente
a tudo isso, vemos as redes sociais de viés espírita se transformarem em
vitrines de superficialidade e distração. Multiplicam-se conteúdos que pouco ou
nada dialogam com as urgências éticas e sociais do nosso tempo. Em vez de
fomentar consciência e responsabilidade, enchem as cabeças dos crentes com
especulações estéreis sobre transição planetária, descrições fantasiosas do
“mundo espiritual” e previsões sobre o que nos espera após a morte — tudo isso
frequentemente entremeado por ataques pessoais entre companheiros de ideal,
discursos rancorosos e debates com a profundidade de um pires.
Esse
é um ponto sério, que exige debate, reflexão e autocrítica. Precisamos,
urgentemente, amadurecer. Entender que espiritualidade sem ética é fuga; que a
vida verdadeira se desenrola aqui e agora, neste mundo que clama por atenção,
justiça e transformação. E sim, sabemos — pela obra de Kardec — que há uma
dimensão espiritual, mas isso nunca foi justificativa para negligenciar a
realidade material, onde nossas escolhas produzem consequências reais.
Não me interessa o papel de profeta, mas arrisco uma advertência: se persistirmos nesse caminho de alienação e vaidade espiritual, a doutrina espírita corre o risco de se tornar irrelevante — e perder completamente o papel lúcido, racional e moral que Kardec vislumbrou para ela. Depois disso, o que virá? Talvez não o dilúvio literal, mas certamente o naufrágio ético de um ideal que poderia ter sido farol — e escolheu ser miragem.
Difícil?
Quem disse que seria fácil?
Texto que traz um incômodo ético que dialoga profundamente com pensadores como Camus e Dostoiévski e Vassoler e até mesmo com o verdadeiro Kardec – não o canonizado, mas o investigador corajoso que ousou levantar véus e cutucar os dogmas. Há aqui uma crítica contundente e dolorosamente necessária ao espiritismo institucionalizado brasileiro, com sua versão domesticada, moralista e resignada do que deveria ser uma doutrina voltada à emancipação da consciência.
ResponderExcluirTexto impecável de quem, no alto da sua autoridade de conhecimento, mostra os desvios que pautam alguns aspectos do espiritismo, no qual permeou parte da sua camimhada espiritual.
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