Pode o humilde ser humilhado?
Essa pergunta é minha velha companheira. No entanto, ao ouvir um trecho do podcast Flow com a participação de Luiz Felipe Pondé, essa questão reavivou meu interesse por ela.[1]
Como faço sempre, insiro um trecho do Novo Testamento como recurso didático — e, ao mesmo tempo, como uma leitura alternativa àquela que costumamos encontrar nos discursos de líderes religiosos. Isso vale inclusive para os núcleos espíritas, dado o foco deste blog que, não por acaso, tem o nome de Espiritismo Debatido.
Não tenho vocação para ser um “jesuete” — um tiete de Jesus[2]. Para mim, ele foi um grande mestre que atuou na horizontalidade. Essa é, a meu ver, sua característica mais saliente. Não falava em grandes catedrais repletas de ouro e incenso, nem de um palanque elevado acima do público que o ouvia.
Sua prática era ao ar livre, em contato com todo tipo de gente — desde seus amigos mais íntimos até romanos e seus cobradores de impostos, os odiados publicanos. Ele não fazia distinções entre eles — daí sua horizontalidade.
Difícil seguir essa prática? Muito difícil. Somos vaidosos — e não apenas por ignorância, mas porque somos, essencialmente, inseguros. Essa insegurança é, em grande parte, responsável pela nossa tola vaidade. Queremos ser — ou, ao menos, queremos apresentar uma imagem pública e particular daquilo que não somos.
Muito de nossa tragédia existencial reside justamente neste ponto: negamos aquilo que somos por insegurança psicológica. Essa “negação de si” nos leva ao mais baixo grau do pensamento — a comparação. Vivemos nos comparando uns com os outros, e isso se torna um combustível de alta combustão para a inveja e a cobiça.
Saliento
que, já há bastante tempo, deixei de ver essa insegurança como sinal de
inferioridade, assim como não considero a vaidade que ela provoca um pecado.
Somos assim — e, quem sabe, nos tornaremos outra coisa em outro tempo.
Nenhuma virtude é fruto de cursos ou workshops feitos ao longo da vida. O virtuoso não ostenta diplomas nas paredes de salas públicas ou particulares. Não há diplomados em virtudes.
Não
é como fazer um curso de Excel, em que se aprende certos comandos importantes
e, uma vez dominados, recebe-se um certificado de conclusão. Virtude não se
adquire por simples transferência, mas por meio da transmissão de conhecimentos
que nos levem a refletir sobre a vida, o mundo — e a perceber o quanto sabemos
pouco e o quão pequenos somos.
Essa
sensação de pequenez é a porta de entrada para a ação virtuosa.
Conhecimento puro e simples — mesmo que abarque uma biblioteca inteira — não é garantia de sabedoria.
Muita
gente que anda por este nosso mundo conhece a Bíblia e outros livros sagrados;
possui notável saber jurídico, filosófico, articulando ideias e conceitos
diversos — mas continua agindo como canalha, e de modo vertical, ou seja, de
cima para baixo, ostentando autoridade.
O Mestre, que — suponho — manipulava a matéria em nível quântico, se misturava com as gentes de maneira horizontal.
É
desejável que profissionais de determinada área pendurem seus diplomas nos
escritórios, até por força de lei. Não é disso que trato aqui.
Lidar com as virtudes próprias é um desafio profundamente difícil para quem verdadeiramente as possui. A começar pela humildade.
É
bom salientar que não se pode confundir “humildade” com “pobreza”. Embora seja
mais raro encontrar alguém rico com humildade, há pobres que são orgulhosos.
Reforço: estou classificando assim fora da chave moral, apenas constatando a
condição de cada um.
A
dificuldade que temos em lidar com a virtude reside justamente em sua principal
característica: a discrição. Discrição essa que Jesus postulou ao dizer que “a
mão esquerda não pode saber o que a direita dá ou faz” — ou seja, o virtuoso
não pode saber que é virtuoso. Em outras palavras, o virtuoso não pode se achar
virtuoso.
Por isso, já disse em outro momento que há algo errado naquele que se acha bom.
Encerro
com Ubiratan Rosa falando sobre a humildade:
“O
orgulho é anti-espiritual. É espiritual a humildade. Mas a humildade não é o
oposto do orgulho: deste quer ser o oposto, mas nele ainda se contém. Quando
‘sei’ que sou humilde, com isso estou me exaltando — é um contrassenso. É como
se eu dissesse que ‘me orgulho de ser humilde’. Não podemos ter noção, aguda ou
vaga, de nossa humildade. Mas podemos viver humildemente pela compreensão do
nosso orgulho.”
Respondendo
à pergunta inicial: o verdadeiro humilde jamais será humilhado, porque se
esvaziou do orgulho. Toda vez que nos sentimos humilhados, na verdade, o que
grita dentro de nós é o orgulho, a soberba, a importância que damos a nós
mesmos. Tanto que é muito comum dizermos: ‘Fulano/Fulana feriu meu orgulho
próprio’.
Difícil?
Quem disse que seria fácil?
Pós-escrito: não se deve confundir humilhação no campo social com questão de orgulho espiritual. Essa humilhação é uma questão de justiça, dadas as condições em que vivemos no mundo.
[2] Tiete: admirador ou
admiradora fanática de alguém, um artista, pessoa pública.
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