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GATOS E NÓS

Em bate-papo recente, meu filho Jonas contou da visita que fez a um velho amigo. Em sua casa, vivem quatro gatos — um deles já muito velho.

Este velho gatinho costuma esperar no portão a hora do passeio. Jonas conta que, quando o portão se abriu, o bichinho quase foi atropelado por não ter percebido o carro que se aproximava. Nem ouviu o chamado do tutor.

Jonas lamentou a condição daquele animalzinho, que já exibe sinais evidentes da velhice e parece apenas aguardar o fim.

Dessa conversa surgiram algumas reflexões que quero compartilhar com quem me lê.

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Traçamos ali o perfil de um animal doméstico que chegou ao limite de vida de sua espécie — gatos vivem em média 15 anos.

Enquanto os filhotes dependem da mãe por cerca de 2 meses, ou seja, 1% de sua vida, o ser humano, que vive em média 73 anos, permanece dependente por cerca de 23% de sua existência, somando-se infância e adolescência — uma fase que pode ultrapassar os 17 anos. Por isso, costuma-se dizer que o ser humano nasce prematuro.

Entre os mamíferos, apenas os grandes primatas, como os orangotangos, têm um grau de dependência semelhante ao nosso no início da vida.

Mas nós, humanos, carregamos um fardo adicional: a consciência aguda de nossa própria finitude.

Segundo o mito bíblico, ao serem expulsos do Paraíso, o primeiro casal humano carregou consigo a maldição da consciência — a capacidade de imaginar o futuro e, portanto, antecipar a morte.

Os demais mamíferos talvez pressintam o fim quando ele se aproxima, mas não há evidência de que convivam com esse saber antecipado como nós.

Gatos, por exemplo — à exceção de Epaminondas, o gato explicador (cuja leitura recomendo com veemência) — vivem no presente, sem projeções mentais. Parece que obedecem a uma antiga e bela lei natural, evocada por Jesus a seus discípulos:

Não vos inquieteis pelo dia de amanhã, pois o amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal.

Krishnamurti dizia algo semelhante com aguda clareza:

Para que a mente se liberte, é preciso viver com o que é, e não com o que deveria ser.

A tradição zen-budista nos oferece histórias (koans) que ilustram bem nossa ânsia por viver em função de projeções inúteis.

Um exemplo:

O Imperador perguntou ao mestre Gudo:
“O que acontece com um homem iluminado após a morte?”
“Como eu poderia saber?”, respondeu Gudo.
“Mas... o senhor não é um mestre?”
“Sim, Majestade", disse Gudo suavemente, "mas ainda não sou um mestre morto.”

Outro koan:

Um discípulo pergunta ao mestre como se livrar da rotina.
O mestre responde: “Lave suas tigelas.”


A resposta, aparentemente fora de contexto, convida à presença — a perceber que a libertação da rotina não está em evitá-la, mas em viver plenamente cada ato, por mais trivial que pareça.

Diferentemente de nós, humanos, que vivemos ansiosos e morremos fragmentados, tentando recolher os cacos de uma vida cheia de expectativas, os gatos velhos vivem a velhice sem projeções. Vivem-na plenamente. E morrem plenos.

 

Difícil? Quem disse que seria fácil?

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