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CONSOLO, UMA DESGRAÇA

 Calma, não se aborreça com o título*.

*Teologicamente, desgraça, pode ser entendida como a ausência da graça de Deus. Estado de infelicidade derivada dessa ausência. Por extensão, essa ausência divina pode ser a ausência de liberdade ou, se quiser, a presença de um estado de dependência tão agudo em que o livre-arbítrio não funciona.[1]

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Assim como Nietzsche considerou a esperança um veneno, eu estou propenso a considerar o consolo como um obstáculo ao crescimento espiritual.[2]

O consolo, dentro dos cânones espíritas, tem lugar de honra. E isto vem do Cristianismo, portanto é muito antigo e solidamente instalado no coração e nas mentes dos crentes há séculos.

A curtíssimo prazo, o consolo não só é bom como até necessário. Estou falando que, ao funcionar bem no curto prazo, mas a longo prazo ele pode viciar e fazer com que o sofredor aja como um bebê que grita toda vez que falta a chupeta. E não há dúvida que ela faltará para os irracionais infantilizados.

Para que o meu entendimento sobre o assunto fique claro, temos de aproximar as lentes da razão e entender que o consolo faz de nós seres resignados. E a razão recusa a resignação como solução dos problemas existenciais e espirituais que enfrentamos.

O resignado ou o consolado é alguém que entregou as armas a um processo de lavagem cerebral no qual o indivíduo se aquieta numa situação evidentemente desigual, quando se trata de dor; e injusta, quando se trata de relações sociais.

Alguém que esteja passando pela experiência da dor e recebe uma dose cavalar de anestésico, vai se sentir aliviado – por extensão – consolado, mas... é provisório além de alienante: provisório, porque o efeito do analgésico vai passar e alienante, porque ele vai precisar de mais doses e, por consequência, pode desenvolver uma brutal dependência das drogas que o aliviam, caso não ataque a origem da dor.

O que funciona neste processo acima descrito é o advento de uma dependência sem fim. Ao contrário do que propunha Jesus na expressão “tome a tua cruz e siga-me”, ou seja, “se quiser me seguir, enfrente os teus problemas e não conte com mimos”.

A proposta do Mestre não convida a uma relação de dependência, mas a uma vida autoral, autônoma e responsável. Como diria Hannah Arendt é “viver sem corrimões”.

Posta essa situação, no campo do físico, podemos avançar no campo psicológico-espiritual, onde o indivíduo, crendo num futuro incerto, engolirá sapos e lagartos, em nome da crença nesse futuro. E a situação incômoda vai se prolongar indefinidamente.

Alguém dirá: então você não acredita em vida depois da morte?

Respondo: Acredito, mas a vida é aqui e agora e não depois. Repito: Jesus disse: Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará suas próprias preocupações. É suficiente o mal que cada dia traz em si mesmo.

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O ser humano está condenado a comer o pão com o suor do próprio rosto.[3]

A consolação é provisória, isto é, não é solução. É essa a desgraça posta no título deste texto.

Ah! – dirá alguém – mas Jesus disse que os aflitos serão consolados, não disse?

Disse. Mas sua fala pode conter outras interpretações além daquele chavão contido na expressão latina Do ut des[4]. Como por exemplo: o aflito que se aflige pela dor dos outros pode ser consolado e aí é que está a chave para entender o que o Mestre disse: essa pessoa solidária deve ser solidária com a dor alheia de forma incondicional, porque não terá garantia de que, agindo assim, resolverá suas próprias dores definitivamente. Ele será consolado – o que equivale a dizer que poderá obter um certo alívio pela ação solidária, mas, absolutamente, essa ação não lhe garantirá a solução definitiva para os problemas que enfrenta.

Além disso, esse tipo de aflito – lembre-se que eu disse do aflito que está aflito pelas dores alheias e não pelas próprias – sempre estará aflito, porque neste mundo a aflição faz parte do existir. Não é à toa que a teologia católica chama este mundo de “vale de lágrimas”. Achar que fazer o bem trará, inevitavelmente, felicidade é outro erro. E é aí que está a raridade dos que fazem o bem por amor ao bem.

Muita gente ingênua acha que ao “fazer o bem” tem a garantia de se livrar de dores agudas da existência. Isto é uma tolice teológica. A única garantia que temos é de que continuaremos a existir mesmo que o mundo acabe. E, de novo, a existência, em seu curso, carrega consigo o fardo pesado das experiências dolorosas o tempo todo e para todos.

Ah! – dirá outro alguém – mas você é muito pessimista!

Respondo: Procuro cultivar um pessimismo metodológico – bem diferente do pessimismo vulgar, tolo e derrotista. Se você não acredita que a vida na Terra é difícil, cheia de desafios constantes, sugiro comprar um bebê reborn que funcionará como um anestésico à falta e à dor reais, ou mudar de mundo.

É importante lembrar que os anestésicos [leia-se a resignação e o consolo] só combatem a dor, mas não atacam a origem da dor.

E mais, como já disse alguém: rezar não adianta, porque rezar é o mesmo que repetir o nome de um analgésico esperando que a dor passe.

Uma pergunta: você acredita que Jesus era alguém com perfil resignado? Ou esta imagem foi o que passaram para que você o seguisse como guia e modelo, cegamente?

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Quero lembrar ao leitor que não estou sozinho neste raciocínio. Santo Agostinho, Pascal, Santo Tomás de Aquino abordam essa questão. O próprio Paulo o apóstolo dizia: “onde está o espírito do Senhor, aí está a liberdade.

[2] “A esperança é o pior dos males, pois prolonga o tormento do homem.”

Essa frase resume a posição de Nietzsche: a esperança, longe de ser uma solução, é vista como um artifício cruel que mantém o ser humano preso à ilusão de que as coisas irão melhorar, adiando o enfrentamento lúcido da realidade. Ela retarda a ação e faz com que o homem tolere situações insuportáveis por tempo demais, acreditando numa salvação que nunca chega.

Nietzsche, sempre desconfiado das ilusões que mantêm o homem submisso, considera que a esperança funciona como uma forma de autoengano e prolongamento da dor. Isso se conecta com sua crítica à religião e à moral tradicional, que, segundo ele, alimentam falsas expectativas.

[3] A expressão foi emprestada da Bíblia, do livro Gênesis, Capítulo 3, versículo 19: a expressão significa que o pão é obtido através do esforço e do trabalho, com suor e cansaço. Ela remete à ideia de que o sustento é conquistado com dedicação e luta. Não há, na Natureza, refeição grátis.

[4] Em poucas palavras, a expressão latina Do ut des significa uma relação de troca. Dou algo para receber outro em troca. Contratos são exemplos dessa expressão.

Comentários

  1. O texto propõe uma releitura crítica dos textos sagrados, rompendo com a teologia da resignação. O “carregar a cruz” é resgatado em seu sentido radical: não como submissão silenciosa, mas como exigência de autonomia, enfrentamento e responsabilidade pela própria existência. Trata-se de desmistificar a promessa de consolo como recompensa futura e chamar à solidariedade incondicional, não como moeda espiritual, mas como ato ético.
    Nesse contexto, ressoa a afirmação do apóstolo Paulo: “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Co 3:17). Deus, então, estaria presente não na resignação, mas onde habita a liberdade — liberdade de pensar, de agir, de sofrer com lucidez. O texto, assim, articula uma teologia da liberdade, em que a fé não é anestesia, mas força para sustentar a dor sem ilusões e agir com consciência no mundo.

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  2. O texto provoca uma reflexão necessária sobre o papel do consolo nas experiências humanas. Em vez de aliviar, ele pode nos manter presos à dor e impedir o enfrentamento real dos problemas e, principalmente, nos manter dissociados do nosso Eu mais profundo.

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