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CONFLITOS - um palpite

Uma de minhas leituras atuais é de autoria de John Gray. O livro tem o título instigante A busca pela imortalidade – A obsessão humana em ludibriar a morte. Todo o espírita deveria consultá-lo.

O segundo capítulo da obra começa com uma frase atribuída a Lênin (líder da revolução russa de 1917) citada no corpo deste texto.

Divirta-se ou desespere-se (aqui o verbo desesperar assume o significado de “deixar de esperar”).

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Ao observar os conflitos que se alastram pelo mundo, não consigo evitar certo desapontamento com algumas crenças nas quais, por muito tempo, depositei toda a minha confiança — e que hoje já não me parecem tão seguras assim.

Uma delas é a crença no progresso contínuo da humanidade ao longo da história.

Existe uma lenda, narrada por alguns espíritos, sobre um planeta que desenvolveu avançada capacidade tecnológica, mas permaneceu estagnado no campo ético. O desequilíbrio entre técnica e moralidade teria sido tão grande que muitos de seus habitantes foram transferidos para um planeta ainda primitivo, a fim de recomeçarem sua jornada evolutiva sob novas bases. Ao mesmo tempo, esses exilados teriam ajudado a impulsionar o surgimento de técnicas fundamentais das primeiras civilizações: linguagem codificada, revolução agrícola, edificações de precisão espantosa e organização social em torno de ideias abstratas.

Segundo a narrativa, o planeta de origem desses espíritos fazia parte do sistema estelar da Alfa da constelação de Cocheiro, conhecida como Capela.

O destino dessa transmigração seria a Terra — então um mundo primitivo — para onde esses seres teriam sido enviados há cerca de 50 mil anos.

Não se sabe ao certo o que motivou essa migração: uma catástrofe ambiental? Uma guerra tecnológica de proporções apocalípticas? Ou talvez uma combinação de ambos?

Os teóricos dessa narrativa chamam o evento de “transição planetária” e denominam os espíritos transferidos de “exilados de Capela”.

Capela é, de fato, a sexta estrela mais brilhante do céu noturno, um sistema quádruplo composto por dois pares de estrelas. No entanto, até o momento, não há evidência de que esse sistema possua planetas em sua órbita — o que fragiliza a veracidade literal da lenda. Ainda assim, essa ausência de comprovação astronômica não invalida, no campo das ideias, a possibilidade de uma migração espiritual provocada por uma extinção em massa em outro mundo.

Segundo a doutrina espírita, o espírito sobrevive à morte do corpo físico, conservando sua individualidade, sua bagagem intelectual e seu nível moral.

Portanto, mesmo que a lenda de Capela seja descartada como fato literal, a hipótese de uma transição espiritual entre mundos permanece concebível — embora improvável.

O aspecto moralista da história, no entanto, ganha nova roupagem nas vozes de alguns profetas — especialmente espíritas — que anunciam que estamos vivendo o mesmo processo descrito na lenda dos exilados. Para eles, trata-se de um momento decisivo: os espíritos que não acompanharem o progresso ético-tecnológico da humanidade estariam prestes a ser transferidos para planetas mais primitivos, onde poderiam reiniciar sua jornada e retomar sua evolução em novos contextos.

Essa visão me parece dura, até desumana. Pressupõe que a humanidade esteja fracassando em sua missão e que só um expurgo pode salvá-la. Como se a Terra estivesse no ponto errado da escala evolutiva, e não onde realmente deve estar.
Não me parece razoável esperar que o ser humano evolua pela ameaça e pelo medo. A propaganda nos maços de cigarro ilustra bem essa ideia: imagens de mutilações, doenças e impotência não impediram o vício. Alguns até zombam: ao receber um maço com advertência sobre disfunção sexual, brincam — “Esse não! Tem um com câncer de pulmão? Prefiro câncer que impotência.”

Outro ponto incômodo: a angústia provocada por essa crença em um expurgo iminente. A dúvida corrói: serei expurgado? E meus filhos? Meus pais? Estaremos juntos? Se um fica e o outro, parte, haverá consolo? Ou haverá sofrimento em dobro?

A questão, para mim, não é a possibilidade da transição em si, mas o efeito psicológico devastador que essa crença pode ter. Num mundo já tão desigual, tão cheio de sofrimento, seria justo aumentar o fardo de almas fragilizadas com mais medo, culpa e desespero?

Esses profetas da angústia estariam, de fato, alinhados com o espírito do Mestre que disse: “Vinde a mim, vós que estais sobrecarregados, e eu vos aliviarei”?

Parece-me que fazem exatamente o oposto: agravam o peso, aumentam o medo.

São, aliás, os mesmos que já haviam sido apontados por Jesus — aqueles que “atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem sobre os ombros dos homens; eles mesmos, porém, nem com um dedo querem tocá-los” (Mateus 23:4).

Essa postura me parece contradizer completamente a mensagem de acolhimento e alívio que encontramos nos Evangelhos.

Faz algum sentido ampliar o terror da existência diante de almas tão vulneráveis?

A mim, não. Mas é só um palpite. Tenho mais perguntas do que respostas.

Por fim, admitindo-se — como hipótese — que uma transição planetária tenha realmente ocorrido em algum lugar do Universo, e que espíritos tenham sido transferidos para mundos mais primitivos, resta uma pergunta essencial: isso se deu apenas por razões morais? Ou o planeta de origem enfrentava um colapso físico, ambiental, bélico — tornando-se incapaz de sustentar vida inteligente?

Prefiro essa segunda hipótese: a de que uma extinção em massa teria forçado a migração — não a punição moral.

Dito isso, quando cruzo esse cenário com o que vivemos hoje — ameaças de guerra nuclear, colapso climático, crises de saúde mental e espiritual — não me surpreende que eu encare com naturalidade a frase atribuída a Vladimir Lênin:

"Algum dia, um macaco vai pegar do chão um crânio humano e se perguntar de onde veio aquilo."

— Lênin (citado pelo filósofo britânico John Gray, em A Busca da Imortalidade: A obsessão humana em ludibriar a morte)

E você... em que prefere acreditar?

Com a leitura desse texto sobraram muitas pontas soltas? Se sim, fico contente. Pensar a vida é complicado.

É difícil, eu sei. Mas quem disse que seria fácil?

Comentários

  1. O texto problematiza, com consistência, a crença na chamada “transição planetária” como um processo de seleção moral punitiva. Ao invés de reafirmar a narrativa tradicional, ele expõe suas implicações psicológicas e éticas, questionando se é legítimo impor mais angústia a um mundo já tão sofrido. A crítica se sustenta ao propor uma hipótese alternativa — a de uma migração forçada por colapso ambiental — que desloca o foco da culpa para a contingência, abrindo espaço para uma reflexão mais compassiva e menos moralizante.

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  2. De fato, observei que mtos que acreditam nessa lenda, se sentem os anjos, e aliviados por estarem sendo separados da escória....

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    1. Sim, Wellington você captou bem, porque esses profetas, por se sentirem portadores da mensagem "salvadora", autoexcluem-se do pavoroso exílio.

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