Cabeça Corporativa
Escultura de Terry
Allen, 1991
E qual dentre vós é o
homem que, pedindo-lhe pão o seu filho, lhe dará uma pedra? E, pedindo-lhe
peixe, lhe dará uma serpente? Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas
aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará bens aos que
lhe pedirem?
(Mateus, capítulo 7, versículos 9 e 10)
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Hoje,
minha memória recuperou uma experiência que tive em um dos meus primeiros
empregos. Toda tarde, uma pessoa da copa passava por cada setor da empresa
empurrando um carrinho com pãezinhos com manteiga e leite quente com café.
Nunca falhava. Era um gesto simples, mas que, para mim, um jovem comum,
representava uma dádiva.
Vale
dizer que a empresa cumpria rigorosamente todas as exigências legais e que essa
oferta de pães não era obrigatória. Paralelamente, os sócios – um pai e seus dois
filhos – todos os anos, se davam presentes: trocavam suas Mercedes-Benz pelo modelo mais caro,
variando apenas as cores.
Mais
tarde, trabalhei em uma grande empresa do setor de calçados, que dispunha de um
restaurante industrial bem montado, onde era servida boa comida a preços
subsidiados.
Já maduro, com a carreira profissional chegando ao fim, estive em uma empresa que não oferecia qualquer serviço similar, mas distribuía lucros aos funcionários de uma forma, no mínimo, curiosa: a verba destinada ao bônus dos empregados era uma fração ínfima dos lucros destinados aos acionistas. Era um pequenino pedaço do bolo. Paralelo que traço aqui, canhestramente, entre os pãezinhos com manteiga que ganhava e e as Mercedes-Benz dos sócios no meu emprego de juventude.
O
curioso era que a distribuição não era equânime. Um engenheiro que ganhava R$
15.000 por mês recebia um bônus equivalente ao seu salário, enquanto um
funcionário que ganhava R$ 2.000 – muitas vezes desempenhando atividades de
alto risco sanitário – recebia apenas o valor do seu próprio salário como
bônus.
Pensava eu, que nunca vesti a camisa de empresa alguma, mesmo ocupando cargos de chefia: Está certo, cada funcionário deve receber um décimo terceiro salário proporcional ao que ganha – assim exige a lei. Mas distribuir lucros é outra coisa! Uma empresa obtém lucro tanto pelo trabalho do engenheiro que faz projetos quanto pelo do operário que recolhe lixo hospitalar. Essa conta não fecha em minha cabecinha.
Contudo,
admito que essa prática já representa um avanço, ainda que distante do ideal de
justiça.
Pães para uns, pedras para outros
Com
o passar dos anos, fui percebendo que tais práticas eram exceção. Em muitas
empresas, os funcionários tinham de vir alimentados de casa ou recorrer ao
restaurante industrial – se houvesse um. Lucros eram privilégio dos sócios, e
os trabalhadores recebiam apenas benefícios-padrão, muitas vezes por obrigação
legal.
Não
raro, a "generosidade" empresarial se manifestava apenas no fim do
ano, sob a forma de um panetone de marca pouco conhecida e uma cesta de Natal com goiabada cascão – que, imagino, estivessem
bem distantes da ceia dos donos da empresa: enquanto os empregados brindavam
com Chapinha ou Sangue de Boi, os sócios abriam suas garrafas de Château
Lafite Rothschild[1].
(Confesso que, imaginando a cena da degustação de um Rothschild, eu os invejava – risos).
Esses
poucos privilegiados, supondo-se abençoados por Jesus e desfrutando dos lucros obtidos, programavam viagens
espetaculares para resorts paradisíacos com suas famílias, enquanto a maioria
buscava uma fonte extra de renda para equilibrar um orçamento apertado, cheio
de desafios para manter um mínimo de dignidade.
A
lição de Mateus e a desproporção da realidade
O
drama desses Sísifos modernos[2]
me faz lembrar outra passagem de Mateus, na qual o Mestre conta a parábola dos
trabalhadores da vinha. Nela, operários que trabalharam o dia todo recebem o
mesmo pagamento daqueles que trabalharam apenas algumas horas. Não me
estenderei sobre a análise da parábola, mas saliento a desproporção
entre essa lógica e a prática corporativa contemporânea.
Alguém
esperto dirá: “Mas Jesus disse que nem só de pão vive o homem.”
Sim,
é verdade. Mas ele também ensinou seus discípulos a orarem pelo pão nosso de
cada dia. E o pão se ganha com trabalho digno e justo. Dignidade e justiça
andam juntas.
Outro
poderá acrescentar: "Isso é puro ressentimento, aquilo que Nietzsche
chamou de ‘moral dos escravos’, que reclama contra os poderosos sem buscar
superação."
Sim,
confesso que há um ressentimento de fundo. Mas a luta é inevitável – e não se
deve esperar uma justiça garantida, como diria o próprio Nietzsche. Trata-se de
uma luta contra um sistema que, sob a lógica implacável do mercado, transforma
tudo em mercadoria.
A
inércia e a força necessária para a mudança
Lembremos
da Primeira Lei de Newton[3]:
Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças aplicadas sobre ele.
Em
outras palavras, aqueles que se beneficiam do sistema não irão se mexer
enquanto não houver uma força capaz de impeli-los à mudança.
Por
isso, louvo as manifestações populares que reivindicam transformações. Mesmo
quando resultam em embates, a história mostra que muitas conquistas só foram
alcançadas por meio de pressão social. No entanto, acredito que mudanças
duradouras só ocorrerão pelo uso do intelecto. Aqui assumo um certo viés
gramsciano: sem violência extrema e sem a eliminação dos oponentes. Afinal,
todos os regimes que tomaram o poder pela força acabaram caindo do mesmo modo.
A
questão central: o sistema e não as pessoas
Não
se trata de perseguir este ou aquele empresário. O problema não são indivíduos,
mas sim o modelo no qual vivemos. E as poucas pessoas que se beneficiam desse
sistema lutarão para mantê-lo – por instinto.
Lembremos Darwin: todos nós, instintivamente, lutamos pela sobrevivência. Mas, no caso dos seres humanos, não se trata apenas de sobreviver – trata-se de buscar uma vida minimamente justa e digna, que nos permita experimentar a maior carga possível de alegria e o sistema no qual estamos todos inseridos, evidentemente, não é justo.
E
é disso que o Mestre fala aos seus discípulos: o Amor é capaz de superar os
instintos.
Entre pedras e serpentes
Deixo
um alerta a quem me lê: há algo de profundamente errado nesse modelo de
sociedade. Do meu primeiro emprego até hoje, muita coisa mudou – e mudou para
pior. Continuamos a dar pedras a quem pede pão e serpentes a quem pede peixe.
Se
nada mudar, corremos o risco desse estado de coisas se tornar tão
naturalizado que, ao recebermos pedras e serpentes, seremos gratos por termos
recebido algo – e não o nada.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Château Lafite Rothschild é
um dos vinhos mais caros e colecionáveis do mundo, com algumas safras atingindo
preços altíssimos em leilões.
[2] Um Sísifo moderno seria alguém que, à semelhança do personagem mitológico, está preso a uma tarefa interminável e aparentemente sem sentido, mas em um contexto contemporâneo. O Sísifo moderno pode estar em qualquer lugar: na rotina desgastante, na busca incessante por sentido, no ciclo de consumo ou na resistência contra sistemas opressivos.
[3] Isaac Newton
(1643–1727) foi um físico, matemático, astrônomo e filósofo inglês que
revolucionou a ciência ao formular as leis do movimento e a lei da gravitação
universal. Ele foi uma das figuras centrais da Revolução Científica.
A mecânica newtoniana se baseia em três princípios
fundamentais, conhecidos como as Leis de Newton: Primeira Lei (Princípio da Inércia)
diz o seguinte:
Um corpo em repouso permanece em repouso, e um corpo em
movimento continua em movimento retilíneo uniforme, a menos que uma força
externa atue sobre ele.
Vamos aos contrapontos...
ResponderExcluirO texto foi desenvolvido em cima de uma citação do Cristo.
Contudo, a citação fala explicitamente da relação entre "Pais e Filhos".
Eu e você (autor do texto), já tivemos empresa, certo? Afinal, somos irmãos há 63 anos.
O colaborador de uma empresa, seja ele CLT ou ESTATUTÁRIO, salvo melhor entendimento, NÃO É MEU FILHO, e mesmo que fosse, a relação é pura e simplesmente de TRABALHO, ou seja, paga-se pela mão-de-obra a qual determinada pessoa foi contratada para executar.
Se, ao final do ano, ela receberá uma cesta básica com bolacha "TRAQUINAS" e não a "NEGRESCO", tudo vai de acordo com o papel desempenhado para cada função individualizada, ou não.
E note que não estou me referindo apenas e tão somente o grau de importância de cada membro dentro da pirâmide funcional, mas sobretudo, ao grau de assertividade. E o que vem a ser isso? Façamos uma analogia...
Se aquele colaborador que está "socado" dentro de um buraco cavando barro para consertar um cano quebrado da SABESP, comete um equivoco qualquer, qual o grau de implicação disso?
Posso responder a essa pergunta. Quase nulo, pois o máximo que poderá ocorrer é ter que refazer o trabalho.
Agora vamos imaginar que um engenheiro, sentado em sua mesa, com seu ar condicionado ligado, tomando água mineral "São Lourenço", cometa um erro de cálculo em uma contenção em obras de escavações do Metrô de São Paulo?
Também posso responder... Vidas serão ceifadas.
Com todo respeito às opiniões em contrário, a "gratificação de cada" não está condicionada à pessoa pelo que ela é como "ser humano", mas está intrinsecamente ligada à sua responsabilidade "como ser humano".
Fato é que, a responsabilidade tem e deve ser recompensada de forma diferenciada, pois se assim não fosse, o "Céu" (apenas como figura de linguagem), estaria cheio de parasitas e imprestáveis que apenas se locupletam do esforço alheio, e certamente essa não é a proposta do Cristo, muito pelo contrário.
Para embasar tal argumentação, vamos nos recorrer de outra citação "Dele" também, qual seja: “Muitos serão chamados e poucos escolhidos” (Mateus 22:14).
Eu não quero "privilégios" nem do Criador e muito menos do meu Empregador (que felizmente já não tenho há anos), o que eu quero é "Justiça", nos termos da definição filosófica antiga, defendida por Sócrates que pregava: "a justiça era cada um fazer aquilo que lhe foi atribuído por natureza."
Difícil? Quem disse que seria fácil?
Abraço Mano Veio. Marco
Antes de mais nada cadê o comentário do "mano velho" que estava aqui!?!
ResponderExcluirQuanto ao tema em questão, ao ler o texto me veio à mente essa letra do Chico Buarque:
"É o pau, é a pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
(...)
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto um desgosto, é um pouco sozinho"
Enquanto reinar a mentalidade individual do empreendedorismo (cada um por si) as lutas coletivas deixarão de ter força.
A nova 'estratégia' consiste que se converse patrão eol empregado sobre o vínculo trabalhista ao invés de cumprir as leis.
Estamos atravessando um período crítico de negacionismo, mas descortino que após a tempestade virá a bonança.
Hoje o egoísmo, amanhã o altruísmo.
Atualmente o individualismo, futuramente o humanitarismo.
Prossigamos.