O Ponto de vista de Buda na vida terrena - Hilma af Klint 1920
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Dizem que, no Universo, há uma batalha travada entre luz e treva.
Por esta janela moral, podemos dizer que, dentro de cada ser humano, há uma luta interna entre treva e luz que pode ser traduzida entre saber e ignorância, assim como entre bem e mal.
Não concordo com a premissa acima. Acho que podemos encarar a questão fora da chave moral para aliviar o peso da culpa e do medo do pecado produzidos pela crença nesta "batalha" e que é tão cara às diversas matrizes teologias.
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Ubiratan Rosa desenvolveu esse tema num livreto chamado MAIS TREVA DO QUE LUZ. Defende ele que vivemos mais em treva do que luz. Ele também o faz, em certa medida, na chave moral.
Por outro lado, Jesus teria dito: Mas, se os seus olhos forem maus, todo o seu corpo estará cheio de trevas. Portanto, se a luz que está dentro de você são trevas, quão grandes trevas são! (Mateus 6:23)
Ambos se reportam à ignorância em que estamos imersos.
Se esta hipótese estiver certa (ignorância = treva), então Sócrates era o homem mais trevoso na Grécia de seu tempo, porque se dizia um ignorante completo.[1]
Vamos tentar dimensionar essa suposta luta de outra maneira, isto é, na chave dialética entre treva e luz.
Antes, porém, quero reproduzir um trecho do Seminário 4 de Lacan citado por Maria Rita Kehl[2]
Tudo o que é real está sempre e obrigatoriamente em seu lugar, mesmo quando se o perturba. O real tem por propriedade carregar seu lugar na sola dos sapatos. [...]A ausência de alguma coisa no real é absolutamente simbólica. É na medida em que definimos pela lei o que deveria estar ali que um objeto falta no lugar que é seu.
Kehl vai lembrar o exemplo dado pelo próprio Lacan:
Ele exemplifica com o caso de um livro que não se encontra em seu lugar na biblioteca. Nada obriga a que tal livro estivesse naquele lugar, a não ser a ordem determinada pelo bibliotecário. É a “precedência do simbólico” que representa o tal livro que não está lá como faltante. Do contrário – “como é que alguma coisa poderia não estar em seu lugar, não estar num lugar onde, justamente, não está?”
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Pensando nisto, percebi que não é a treva que seria a ausência de luz como querem aqueles que desejam moralizar a natureza. Para a natureza, a luz é a presença da aparente ausência da treva. Em outras palavras: a treva se faz simbolicamente ausente na presença da luz, como o livro no exemplo de Lacan.
Aqui, engancho outro argumento que me ocorre há algum tempo: se Deus criou a luz e a achou boa[3], então não havia luz antes de sua criação. Infere-se que o espanto divino em achar “boa” a luz leva-nos à conclusão de que Deus não a conhecia e que, portanto, vivia nas trevas.
Sei, arrisco ser lançado na fogueira da inquisição dos novos Torquemadas[4]. Meu consolo é que não serei o primeiro, nem o último. Além disso, creio que Deus (o Deus que intuo) não se zangará comigo por pensar assim.
O tamanho da treva
Vale lembrar que os astrônomos acreditam, até prova em contrário, que o Universo é composto de 5% de objetos observáveis, porque emitem luz; e 95% dele é matéria e energia escura. Portanto, há muito mais treva do que luz na criação divina.
Os fótons que atravessam o Cosmos (parte visível) são uma pequena parte daquilo que chamamos de Universo. O restante é treva.
A luz tem a capacidade de nos enganar a ponto de acharmos que ela tem o poder de dissipar as trevas, mas não é isso o que ocorre no Real (como diria Lacan), tudo o que é real está sempre e obrigatoriamente em seu lugar. Na verdade, quando a luz se apresenta, a treva cede, provisoriamente, espaço para a luz e, esta luz, simbolicamente, representará a ausência de treva, porque, aí, volto a Lacan: É na medida em que definimos pela lei o que deveria estar ali que um objeto falta no lugar que é seu.
Maria Rita Kehl em um dos parágrafos seguintes, escreve:
A privação é, para Lacan, a referência necessária para podermos compreender o psiquismo, formado em resposta a uma estrutura que se organiza em torno da falta de objeto. Não se trata de uma privação “experimentada” e sim suposta pelo sujeito. (O destaque é meu).
Portanto, para aquele que compreendeu bem o Real, treva e luz não são antagônicas, mas complementares, como assim entendem os orientais taoistas. Luz e treva não se anulam. Sem uma, não existirá a outra.
Daí, não termos de nos afligir com a ideia de que carregamos treva em nosso ser. Sem ela, a luz não existiria absolutamente em nós.
Sem treva Deus não poderia habitar nosso coração.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Referência à famosa frase atribuída ao sábio grego: “tudo o que sei é
que nada sei.”
[2] Maria Rita Kehl, RESSENTIMENTO, página 72, Clínica Psicanalítica, Casa
do Psicólogo, 2011.
[3] “A luz se fez e Deus achou boa" é uma frase da Bíblia, em Gênesis 1:3, que descreve o momento em que Deus criou a luz e viu que era boa.
[4] Tomás de Torquemada (1420-1498), alcunhado o Grande
Inquisidor, foi o Inquisidor-Geral espanhol.
Li esta postagem na noite da 3° f de carnaval, estava em luz & treva. Reli, na noite de 4° f de "cinzas", e encontrava-me em treva & luz.
ResponderExcluirHoje associo esse estado d'alma aos conceitos da filosofia chinesa - Yin e Yang - que simbolizam o aspecto dual no universo.
E também me fez lembrar da filosofia heraclitiana a qual o mundo é marcado por uma dualidade constante e permanente.
Alguns pares de polaridades que experenciamos, no fluir transitório de nossa jornada espiritual e material: feminino e masculino, quente e frio, noite e dia, saúde e doença, lua e sol, passivo e ativo, terra e céu, subida e descida, futuro e passado.
Cara e coroa da mesma moeda. Faces de nossa identidade ainda, e sempre, em elaboração.
Por último, posto um vídeo (antigo) singelo e criativo:
https://youtu.be/ZxFlN-yHES0?si=SXd8IfqRG1QMQ7gS