Pular para o conteúdo principal

A FORJA DA EXPERIÊNCIA

Diz o poeta em “Ilusões da Vida”

Quem passou pela vida em branca nuvem

E em plácido repouso adormeceu,

Quem não sentiu o frio da desgraça,

Quem passou pela vida e não sofreu,

Foi espectro de homem, e não homem,

Só passou pela vida, não viveu.

Francisco Otaviano[1]

 ++++++++++++

Há quem diga que é melhor chorar com dinheiro no bolso, do que chorar sem ele.

Ironicamente, Nelson Rodrigues dizia que “dinheiro compra até amor verdadeiro”.[2]

É inegável que, para os padrões atuais, o dinheiro é fator de grande diferença na qualidade de vida de qualquer um, mas...

Só dinheiro não basta para tornar alguém feliz. Sei, é um clichê dito por alguém que pode ser um invejoso e ressentido (alguém já disse que criticamos os ricos porque os invejamos). Contudo, tenho certeza de que é algo facilmente constatado por grandes psicoterapeutas entre as paredes de seus consultórios de que a riqueza não traz, necessariamente, boa qualidade de vida interior.

É óbvio que não estou justificando o abismo cavado entre pobres e ricos. Tampouco sou ingênuo a ponto de achar que os seres humanos nascem marcados pela generosidade incondicional.

O nosso grande desafio vem do conceito de saúde dado pela Organização Mundial da Saúde – a OMS: um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença

Então, o que complica é o quesito “bem-estar mental” que pode alcançar a todos, sejam eles nórdicos bem-apessoados e cheios de garantias sociais e os que vivem em lugares insalubres ameaçados o tempo todo pela fome e suas consequências.

Para se ter uma ideia, a FAO aponta 10 milhões de pessoas aniquiladas pela fome ou em consequência dela, por ano – isso equivale a 19 pessoas por minuto morrendo lentamente – a morte por inanição é lenta.

Imperceptivelmente, o sistema em que vivemos desumaniza-nos, corroendo o pouco do espírito solidário que, eventualmente, ronda nossa alma, impulsionando-nos a todos a uma competição cada vez mais acirrada, ao consumo e com recursos limitados. A conta não fecha.

Ouçamos Djavan e seu questionamento em Seca, composição dele e Caetano Viana:

https://www.youtube.com/watch?v=rjJMr4azDMU [3]

Por outro lado, paradoxalmente, é verdade que o fracasso e as inúmeras dificuldades que enfrentamos nos humaniza e nos fortalece, forjando nosso caráter, caso não nos mate. Já dizia o velho Nietzsche: o que não me mata, me fortalece.[4]

Contudo, não custa indagarmo-nos de que lado estamos e se não estamos vivendo em brancas nuvens como acusa o poeta.

Vale ouvir o mesmo Djavan cantando Sabe Você, de Vinícius de Moraes/Carlos Lyra:

https://www.youtube.com/watch?v=RyADHyzzSwE  [5]

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889) foi um advogado, jornalista, diplomata, político e poeta brasileiro

[2] A ideia de que o dinheiro pode comprar ou corromper até mesmo o amor é um tema recorrente na obra de Nelson Rodrigues, especialmente na sua visão pessimista e irônica da natureza humana. Ele explora essa temática por meio de personagens que agem movidos por interesses financeiros, onde o amor se torna uma mercadoria ou um instrumento de ascensão social. 

Nelson Rodrigues frequentemente comenta sobre a natureza interesseira das relações humanas, sugerindo que o amor, em muitas ocasiões, é facilmente negociável e contaminado por motivações materialistas. Aponta os mecanismos por trás da ambição, da hipocrisia e do poder corruptor do dinheiro nas relações humanas, especialmente as amorosas. 

[3] Seca

A Terra se quebrando toda

A fome que humilha a todos

Vida se alimenta de dor

Que pobre povo sem socorro

Porque será que Deus pôs ali

O ser pra ser assim, sofredor?

Sob a brasa do sol padecer

Do desdém, do poder

Fingido

Sem saber o que é ser feliz

Viver, como se diz

Dá medo

Apesar de se ter céu azul

O mesmo lá do sul

Mesmo Deus

A Terra se quebrando toda

A fome que humilha a todos

Vida se alimenta de dor

Que pobre povo sem socorro

Porque será que Deus pôs ali

O ser pra ser assim, sofredor?

Sob a brasa do sol padecer

Do desdém, do poder

Fingido

Sem saber o que é ser feliz

Viver, como se diz

Dá medo

Apesar de se ter céu azul

O mesmo lá do sul

Mesmo Deus

A Terra se quebrando toda

A fome que humilha a todos

Vida se alimenta de dor

Que pobre povo sem socorro

[4] Crepúsculo dos Deuses, Máximas e Flechas item 8.

Essa frase reflete a perspectiva de Nietzsche sobre a importância de enfrentar dificuldades e adversidades como forma de crescimento e fortalecimento pessoal, um tema recorrente em sua filosofia. Ele acreditava que a superação de desafios era essencial para o desenvolvimento do que chamou de "espírito livre" e para a afirmação da vida.

[5] Sabe Você

Você é muito mais que eu sou

Está bem mais rico do que eu estou

Mas o que eu sei você não sabe

E antes que o seu poder acabe

Eu vou mostrar como e por que

Eu sei, eu sei mais que você

Sabe você o que é o amor? Não sabe, eu sei

Sabe o que é um trovador? Não sabe, eu sei

Sabe andar de madrugada tendo a amada pela mão

Sabe gostar, qual sabe nada, sabe, não

Você sabe o que é uma flor? Não sabe, eu sei

Você já chorou de dor? Pois eu chorei

Já chorei de mal de amor, já chorei de compaixão

Quanto à você meu camarada, qual o que, não chorou não

E é por isso que eu lhe digo e com razão

Que mais vale ser mendigo que ladrão

Sei que um dia há de chegar e isso seja quando for

Em que você pra mendigar, só mesmo o amor

Você pode ser ladrão quando quiser

Mas não rouba o coração de uma mulher

Você não tem alegria, nunca fez uma canção

Por isso a minha poesia, ah, ah, você não rouba não

 


Comentários

  1. Estamos tal qual a letra da música cantada pela pimentinha Elis Regina:

    "Vivendo e aprendendo a jogar
    Nem sempre ganhando
    Nem sempre perdendo
    Mas, aprendendo a jogar"

    Em todos os aspectos.

    Este foi o meu 119° comentário no "Espiritismo debatido".

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

CORONAVÍRUS E A TRANSIÇÃO PLANETÁRIA

Depois da espanhola [1] e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão. A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia. Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 13/04/2020 Por mais hedionda seja a figura de Joseph Goebbels [2] recentemente foi elevada ao status de máxima da sabedoria sua frase: “uma mentira contada muitas vezes acaba se tornando uma verdade”. É óbvio que se trata de uma armadilha, de um sofisma. No entanto, é plausível que se pense no poder dessa frase considerando como uma verdade baseando-se na receptividade do senso comum,   independentemente de cairmos no paradoxo de Eubulides ou de Epimênides [3] . ...

Tempus Fugit - Rubem Alves

O que me motivou a homenagear o "Seu" Ary imediatamente à sua morte, deve ter sido inspirado no texto que segue abaixo somado à gratidão guardada vivamente em minha alma. Não sei, mas posso ser punido por publicar crônica de autoria de Rubem Alves Tempus Fugit , Editora Paulus, 1990, mas valerá o risco. TEMPUS FUGIT Rubem Alves Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas. De dia, tudo era luminoso, mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar e suas mús...

O INFERNO E A QUARENTENA

Há uma peça para teatro escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre intitulada “Huis Clos” mais conhecida entre nós pelo título “Entre Quatro Paredes” onde Sartre explora, entre outros, o tema da liberdade – tema tão caro ao pensamento desse filósofo. A peça é encenada em um apartamento que simboliza o Inferno onde três personagens interagem com a figura de um quarto – o criado. Não interessa aqui explorar a peça em todas as suas complexidades, mas de chamar a atenção para a fala do personagem Garcin que, ao fim da peça, exclama: “o Inferno são os outros”. Há quem diga – gente com repertório imensamente maior do que o meu -, que devemos entender que “os outros” não são o inferno, mas nós é que somos o inferno. [1] Esse tema traz muitas inquietações àqueles que pensam a vida de forma orgânica, não simplista. Meu palpite é que a frase de Garcin confirma para mim o que desconfio: que os outros são o inferno, porque o outro, a quem não posso me furtar da companh...

PAUSA PARA OUVIR - Chopin 2

Frédéric François Chopin 01/03/1810 - 17/10/1849 Piano Concerto No.1, Movimento 2 - Largo, Romance

A REDENÇÃO PELO SANGUE DE UM CAVALO

No último texto postado falei do “sangue de barata”. Desta vez, ofereço-lhes um texto o qual tive contato pelo meu filho Jonas no fim dos anos 90. A autoria é de Marco Frenette. Nele, Frenette fala do poder do sangue de um cavalo. Nota: o tamanho do texto foge do critério utilizado por mim neste espaço que é o de textos curtos para não cansar   a beleza de ninguém. CAVALOS E HOMENS Marco Frenette Revista Caros Amigos, setembro 1999. Essa short cut cabocla está há tempos cristalizada na memória coletiva de minha família, e me foi contada pela minha avó materna. Corria o ano de 1929 quando ela se casou, no interior de São Paulo, com o homem que viria a ser meu avô. Casou-se contra a vontade dos pais, que queriam para a filha alguém com posses compatíveis as da família, e não um homem calado, pobre e solitário, que vivia num casebre ladeado por uns míseros metros quadrados de terra. Minha avó, porém, que era quase uma criança a época, fez valer a força de sua pers...

A QUEIMA DO "EU"

Estimado Humberto, o feliz destaque "[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do "eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a "[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do "eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência" (Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador? Samuel Prezado irmão Samuel, obrigado pela sua companhia. É uma honra tê-lo aqui. Sem dúvida há uma relação entre Nietzsche e...

PAUSA PARA OUVIR - Rameau

Jean-Philippe Rameau 25/09/1683-12/09/1764 https://www.youtube.com/watch?v=fbd5OAAN64Y

BUSCA

Somos humanos, demasiadamente humanos [1] e nossa humanidade baseia-se na linguagem. Isso é evidente. Qualquer tipo de busca, por exemplo a “humildade”, está fadado à frustração. A busca pressupõe algo vindo da razão e esta tenta criar conceitos em tudo o que busca. A razão utiliza o artifício da comparação e os afetos não funcionam assim. Toda vez que me comparo com alguém, na verdade estou comparando algo que conheço pouco – eu mesmo, com algo que não conheço nada – o outro. Mas o conceito vem carregado de cultura, e a cultura é produto da linguagem, e a palavra é o tijolo da construção conceitual, nunca a coisa em si. Enquanto a razão busca a palavra “humildade” que é intenção, a vivência é o gesto. E sabemos, segundo Rui Guerra: há distância entre ambos. [2] . Enquanto a vida é vertiginosamente dinâmica – tudo que é agora, não será o mesmo no segundo seguinte, a palavra é a tentativa de manter-se aquilo que escapa por entre os dedos; é a esperança angustiada de eternizar-s...