Autoretrato em esfera espelhada
Maurits Cornelis Escher
(1898-1972)
Para mim, a imagem do artista refletida numa bola de Natal
Com
a aproximação do Natal, é comum ouvirmos que é “momento de reflexão”. Nada
melhor que refletirmos sobre a oração ensinada pelo Mestre.
A meu ver, as linhas que seguem abaixo não são, exclusivamente, para um público cristão, apesar de compor a base desse ramo da religiosidade humana. Ousei extrapolar a visão própria do Cristianismo e avançar além de suas fronteiras. Como eu já disse em outro lugar, o Espiritismo tem caráter universalista.
Finalmente, creio estar pagando uma dívida a todos que visitam e leem com paciência e compreensão os textos postados neste espaço virtual.
Sou muito grato a todos vocês.
Eu sei que você que me lê, diante das variadas obrigações da vida moderna e do tempo disponível que encurta cada dia mais, será difícil ler de um só fôlego um texto tão comprido como este. Você pode fazê-lo aos poucos, se assim for mais conveniente.
A fonte inspiradora desse trabalho é o ensaio de Ubiratan Rosa intitulado “O Pai-Nosso: Notas para uma interpretação da mais profusa oração da cristandade”.[1]
Suas críticas e correções serão sempre bem-vindas.
++++++++++++++
Todo
mundo já sabe que o Mestre propôs essa prece, porque os discípulos pediram a
ele que os ensinasse a orar.
Para pessoas mais exigentes, prece e oração são coisas diferentes, mas o sentido mais profundo é o mesmo.
Parece estranho que um judeu adulto necessitasse de alguém para ensinar-lhe a orar, porque a tradição judaica enfatiza essa prática desde sempre, principalmente depois do bat ou bar-mitzva – quando há um ritual de passagem da fase adolescente para a adulta[2].
Como sempre, busco entender as camadas do texto para extrair seu significado mais profundo através do espelho do simbólico. Foi o que propôs Ubiratan Rosa.
Pai nosso que estás no céu
Jesus
disse aos discípulos que o Reino de Deus ou Reino dos Céus está dentro de cada
um de nós[3].
Então, podemos deduzir que há, em nós todos, uma espécie de “genética divina”,
mas ainda não manifesta em sua plenitude por conta do entulho cultural milenar
e do consequente condicionamento psicológico derivado desse entulho. A oração
faz com que nos lembremos dessa herança divina que nos atravessa.
Nota
importante: isso não quer dizer que, nós seres humanos, somos especiais diante
de toda a criação. Todos os seres e coisas devem ser sacralizados. Todas.
Por
que todas?
Porque
até estudos antropológicos assim interpretam.
Ao
contrário da tolice dos que acreditam que devemos nos orgulhar de sermos “imagem
e semelhança de Deus”, ao introjetar a ideia de que trago essa “herança divina”
em mim, o grau de responsabilidade diante de toda a criação aumenta
consideravelmente. Responsabilidade até com as pedras do caminho.[4]
Nota:
É curiosa a relação dessa ideia com a resposta dada pelos espíritos a Kardec
quando este pergunta: “onde está inscrita a lei divina?”. E os espíritos
respondem: “na consciência”.
Infere-se que, quanto mais se revela o “Reino dos Céus” dentro de mim – e isso não é feito por osmose, mas por um trabalho atento de observação de si mesmo -, mais consciência tenho de minha responsabilidade.
santificado seja o vosso nome
“Santificar”
aqui, pode ser entendido como “curar” – chegar a um estado de ausência de
doenças da alma. Como entender, então, que o nome de Deus deve ser curado,
santificado?
A sutileza está na diferença entre o “nome de Deus” e de Deus propriamente dito. O nome de Deus está inscrito em sua criação. Se sou criado por Deus, então, quando digo “santificado seja o Teu nome”, estou dizendo que só poderei “santificar o nome de Deus” quando eu me curar do egoísmo, da mesquinhez, da vaidade, da ignorância que me caracteriza. E isso representa um incômodo para os preguiçosos, porque não ocorre por milagre, mas por autoconhecimento; livre de culpas e justificações: autoconhecimento não é ato condenatório, psicologicamente destrutivo, mas reflexivo e libertador.
Portanto, nesse exercício contínuo de observação de mim mesmo vou santificando o "nome de Deus".
vem a nós o vosso reino
Se
o Mestre já dissera que o Reino de Deus está dentro de nós, então por que Ele
mesmo diz “vem a nós o vosso reino”?
Como
eu já disse anteriormente, esse reino está em nós, porém em potência. Devo
então fazê-lo surgir, despertar, acontecer em mim. Esses verbos estão
relacionados com o verbo “vir” da prece.
Portanto, quando oro, me coloco interessado em fazer surgir este reino trazendo-o da condição de potência para a de ato.
Não custa lembrar Kierkegaard: A função da oração não é influenciar Deus, mas mudar especialmente a natureza daquele que ora.
seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu
O
Mestre reforça a necessidade de atualizarmos aquilo que está em potência dentro
de nós – o Reino dos Céus, fazendo com que nossas atitudes externas guardem semelhança com o que se passa dentro de nós. Quanto mais
coerentes formos, mais e mais a “vontade de Deus” será feita e não a nossa
vontadezinha movida por interesses mesquinhos.
Alguém
dirá: mas o que quer a vontade de Deus?
A
“vontade de Deus” não quer, porque o querer é próprio daquele que não pode.
Quem pode, não precisa querer, porque já pode.
Acho pertinente citar um filósofo alemão chamado Arthur Schopenhauer a quem se atribui o seguinte pensamento: O querer é essencialmente sofrer, e como o viver é querer, toda a existência é essencialmente dor.
(o danado do Schopenhauer era bem contundente e pessimista diante de nossos quereres)
Esse
é um desafio para os nossos quereres: a vontade de Deus é o que é e não
o que deveria ser, como propõe a nossa vontadezinha interesseira.
Daí a dupla tolice em dizer: “Se Deus quiser...”. 1) Deus não quer nem deixa de querer; 2) ao dizermos “se Deus quiser” no fundo, estamos querendo que Deus faça aquilo que desejamos que seja feito segundo nossos interesses. Outra tolice.
Por mais que queiramos misturar água e óleo, as leis da física e da química não darão a mínima bola para a satisfação de nosso desejo.
O pão nosso de cada dia nos daí hoje
É
interessante notar que o Mestre dá um giro de 180 graus ao sair do pensamento
abstrato como “reino de Deus”, “vontade de Deus”, “cura espiritual” para o
concreto. Quer coisa mais concreta que o pão – símbolo das necessidades
materiais básicas?
Estaria
o Mestre despreocupado com o futuro em termos materiais? Estaria Ele reprovando
aqueles que exercitam a prospecção, montando projetos para um futuro menos
distante que o Céu? Creio que não.
O
Mestre chama a atenção para o excesso, a sovinice, o acúmulo e o apego
desmesurados que escravizam mais do que libertam.
Ele
busca na tradição judaica a fonte de sua inspiração: a história do maná
contada no Velho Testamento. O povo hebreu saiu da escravidão egípcia e
caminhou durante 40 anos pelo deserto. A fome os visitou durante esse período
e, segundo a narrativa bíblica, Deus fez com que surgisse, toda manhã, uma
substância que mitigaria a fome e sustentaria toda aquela gente até o encontro
com a terra prometida[5].
Porém,
Moisés – líder dos hebreus – advertiu a todos que não acumulassem e nem
guardassem o maná. Aqueles que teimavam em fazê-lo observavam que o maná
apodrecia de um dia para o outro.
Por
isso, o Mestre vai ensinar: o pão nosso de cada dia, nos dai hoje.
O
rabino Nilton Bonder comenta, em seu profundo ensaio “Ter ou Não Ter – eis a
questão” que o maná representa a posse do nada.
Nota: essa seria a mais poderosa advertência à mentalidade teológica da prosperidade e do domínio, tão difundida em nosso tempo.
perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido
Neste passo da prece, o Mestre sai do campo metafísico e do campo concreto para tratar do campo psicológico. Vamos caminhar...
A origem da palavra perdão vem do Latim perdonare, de per-, “total, completo”, mais donare, “dar, entregar, doar”.
Partindo
dessa informação sobre a origem da palavra, podemos inferir que, ao pedirmos
perdão de nossas ofensas, estamos, na verdade, solicitando que as eventuais ofensas que tenhamos cometido, devem ser reveladas totalmente à nossa consciência, assim
como temos noção aguda das ofensas que recebemos dos outros.
Trata-se, portanto, não de um comportamento externo e presunçoso, mas algo que ocorre em nosso íntimo e que nos impacta efetivamente. Não é conversa mole, mas uma confrontação conosco mesmos.
não nos deixei cair em tentação
No
pensamento cristão clássico, maniqueísta[6],
a tentação sempre tem sua causa de origem maléfica que põe em risco nossa
salvação - o Diabo seria a entidade que nos põe a perder, segundo aquela
tradição. Diabo não passa de uma criação mitológica; para muitos, seria a
origem do mal que campeia no mundo.
Para boa parte dos religiosos da corrente cristã o pobre do “Cão-tinhoso" é culpado por todas as mazelas e desavenças humanas - uma estratégia mental na qual tiramos toda a responsabilidade de nossos ombros e a terceirizamos a culpa. Fácil, não é mesmo?
Na
visão espírita, o chamado mal é provisório e passageiro pelo mecanismo
evolutivo do espírito.
Então,
o que seria a “tentação”? Seria os desafios a que todos nós estamos submetidos,
onde forças tanto biológicas quanto éticas acabam criando grandes dilemas
morais e conflitos comprometedores.
Tendo
a acreditar que Deus tudo permite para o nosso aprendizado – segundo a doutrina
espírita, temos a eternidade pela frente. Ao longo do tempo, vamos aprendendo a
lidar com esses desafios (tentações) e, ao superá-los, crescemos e nos
libertamos.
Numa
outra chave, entendo que é um desafio posto para quem vive em sociedade. O
outro, o qual comigo convive, é o inferno. O outro, com os seus ataques
constantes aos meus valores, minhas expectativas, minhas idiossincrasias,
minhas crenças, me inferniza o tempo todo. Freud chamava de "mal-estar" a convivência em sociedade. Mas é exatamente na observação de
minhas reações a esses ataques que vou me conhecendo.
Por
outro lado, não podemos esquecer que o Mestre era um Sabra[7]
– alguém que possuía um discurso bastante difícil, contundente, mas um coração
compadecido e disposto a ajudar quem quer que fosse.
Seu apelo não era nada fofinho, com o fim de nos livrar dos obstáculos e problemas da vida. Na prece, o Mestre convida a prestarmos muita atenção no desafio em curso (as ditas tentações), para podermos alterá-lo a nosso favor, ressignificando-o para dar-lhe o devido valor.
Não
existe refeição grátis, como dizem os pragmáticos.
E o Mestre completa:
mas livrai-nos do mal.
O mal é uma criação humana e não divina.
O
mal maior é a ignorância que nos torna maus (ignorância entendida como a falta
de conhecimento, de clareza mental diante dos fatos, de ausência de compreensão).
Desta maneira, a leitura deve ser literal deste trecho da prece: temos de pedir a todo momento que nos livremos da ignorância. E isso não se faz repetindo incontáveis preces com olhos revirados para cima (?!) e joelhos dobrados. Sem dúvida, preces nos ajudam a lembrar de nossa tarefa em aprender, estudar, aprofundar, trabalhar em direção a uma vida rica de saber e, quem sabe, de sabedoria, mas esse aprendizado deve ser de cada um e de forma dedicada e constante.
Sem as ferramentas do conhecimento, da hermenêutica, da reflexão, não conseguiremos tocar mais profundamente a proposta do Mestre e ficaremos repetindo palavras ao vento na esperança de obtermos favores divinos sem a menor chance de iluminação.
Iluminação que evitará uma religiosidade burocrática e protocolar, bem longe da alegria espiritual proporcionada por uma espiritualidade responsável que não se confunde com a alegria barulhenta caracterizada por gargalhadas e festas ruidosas. Uma espiritualidade que, não raro, se aproxima da tristeza espiritual tão evitada pelos tolos embrutecidos.
No Pai-Nosso, o apelo do Mestre é a prática de uma espiritualidade visitada pela compaixão, sinalizada por uma profunda visão crítica de nós e do mundo, porém sem desejo de fugas infantis, nem de vingança, apenas com os pés bem fincados no chão deste planeta valioso e que nos enche de sentimento solidário com toda a vida que nele brota.
O Pai-Nosso pode ser comparado a um exercício onde nos vemos refletidos no “espelho mágico” de uma bola de Natal[8].
Difícil? Quem disse que seria fácil?
Amém
[1] Revista Comunicação – Psicologia do Comportamento. Ano I nº 3 – Editora
Bartolo Fittipaldi.
[3] Lucas, 17:21
[4] A propósito, a origem da palavra responsabilidade é essa: Responsabilidade vem
do Latim RESPONSUS, particípio passado de RESPONDERE, “responder, prometer em
troca”, de RE-, “de volta, para trás”, mais SPONDERE, “garantir, prometer”.
[5] Segundo o Êxodo, após a evaporação do orvalho formado durante a madrugada, aparecia uma coisa miúda, flocosa, como a geada, branca, descrita como uma semente de coentro que lembrava pequenas pérolas. Geralmente era moído, cozido, e assado, sendo transformado em bolos. Diz-se que seu sabor lembrava bolo de mel. Fonte: Livro do Êxodo, capítulo 16.
[6] Numa visão geral, maniqueísmo é a divisão do mundo em dois
polos: bem e mal; certo e errado; Deus e o Diabo. Deus permitiria a tentação
para provar o crente, enquanto a tentação seria provocada pelo Diabo.
[7] A palavra sabra alude a uma planta de deserto, parecida com o
figo da Índia, que possui uma casca bem grossa e espinhenta e um conteúdo macio
e doce. Modernamente, judeus nascidos na região de Israel são chamados de
sabras.
[8] O nome original da obra de arte acima é Der Zauberspiegel que traduzido
significa “Espelho Mágico”.
Assim seja. Assim é. Saravá. Aleluia. Gasshô. Shalom.
ResponderExcluir