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ENTERRAR OS MORTOS

Ao ser abordado por uma pessoa que se declarava simpático aos seus ensinamentos, e por essa razão gostaria da acompanhá-lo em suas peregrinações, mas dizendo não poderia fazê-lo imediatamente, porque tinha de enterrar o pai morto. Disse-lhe o Mestre:

A outro Jesus disse: — Siga-me! Mas ele respondeu: — Senhor, deixe-me ir primeiro sepultar o meu pai. Mas Jesus insistiu: — Deixe que os mortos sepultem os seus mortos. Você, porém, vá e anuncie o Reino de Deus. Outro lhe disse: — Senhor, quero segui-lo, mas permita que antes disso eu me despeça das pessoas da minha casa. Mas Jesus lhe respondeu: — Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus.

Lucas 9:59-62 Nova Almeida Atualizada (NAA)

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Não se sabe se essas pessoas O seguiram ou não, mas podemos retirar desse pequeno trecho do Evangelho de Lucas algumas reflexões.

Decisões

A palavra “decisão” pode ser desmembrada assim: DE + CISÃO. Todos sabemos que a palavra “cisão” significa divisão.

Cindir, então, seria uma mudança radical no modo de vida: de olhar o mundo de outra maneira, de ver com clareza as verdadeiras necessidades do mundo para transformá-lo – seja ele interno ou externo.

No Zen-budismo, por exemplo, não é a ação que importa, mas a maneira como se age. Agir com decisão é romper com aquilo que envelheceu para refazer um novo caminho.

Algumas camadas do texto

Os textos evangélicos são ricos em simbolismos, como o são os mitos gregos, nórdicos etc.

1)    “Anunciar o Reino de Deus”: a maneira mais eficaz de anunciar alguma coisa é pelas ações do anunciante diante dos desafios da vida. Não existe coisa mais convincente do que a ação. Chico Mendes[1] havia decidido defender a preservação da floresta. Morreu por ela. Sua ação deixou um legado de luta pela preservação ambiental em todo o mundo.

2)    Aquele que não está decidido, terá dúvidas quanto à nova proposta de viver. O Mestre propõe uma decisão, porque ou se é quente, ou se é frio. Mornos são aqueles duramente criticados no livro do Apocalipse[2]. Gente interesseira que põe um pé em cada canoa, como diz o ditado popular. Se tem dúvida quanto a isso, sugiro reler o texto de Lucas.

3)    Como eu já disse neste Blog, a espiritualidade proposta pelo Mestre é bastante dura para nossas vontades moles. É uma mensagem doce, porque amorosa, mas dura, porque fere nossos interesses imediatos.

Sugiro a leitura de “Rapadura é doce, mas não é mole” (link abaixo)

https://espiritismosec21.blogspot.com/2019/09/rapadura-e-doce-mas-nao-e-mole.html

4)    A linguagem hiperbólica do Mestre “deixe os mortos enterrarem os seus mortos” pode ser entendida como: deixar aqueles que estão com a consciência amortecida enterrarem os que, de fato, estão mortos, ou seja, assumir compromissos mais amplos ao invés de preocupações com deveres comuns.

Isto não quer dizer desrespeito com os corpos dos que se foram. Esta seria uma leitura literal. Nossa proposta é extrair o simbolismo da frase.

Os mortos-vivos e os vivos-mortos

Há uma estratégia empresarial chamada Obsolescência Planejada. Trata-se de produzir itens com vida útil mais ou menos curta. Tudo isso é calculado para que a rotatividade do consumo aumente e os lucros, também.

Quero propor aqui, essa mesma ideia, mas numa chave antropológica.

Nessa perspectiva, todos nós deveríamos “planejar” nossa vida para enfrentar o inevitável: a velhice, a doença e a morte.

Dada a contingência, esse planejamento jamais poderá pretender ser exato, mas apenas um rascunho no qual vamos fazendo ajustes ao longo da vida, sem paranoias desnecessárias.

Dependendo do “plano” que traçamos, o lucro será garantido pela aceitação e pela serenidade diante de nossa condição transitória.

O nascer e morrer que ocorre a todo momento seria a face visível da rotatividade mencionada na equação empresarial para o consumo.

Na chave antropológica, não seríamos consumidores, mas consumidos pelo tempo. Nessa perspectiva, passamos de mortos-vivos, levados pela correnteza de variadas ideologias, para a condição de autores da própria história, ou próximos disto, onde assumiríamos o papel de vivos-mortos de acordo com dialética da vida, como propunha o Mestre.

Enfim, o trecho do evangelho de Lucas nos leva a uma profunda reflexão sobre a responsabilidade individual, a importância da ação e o significado da fé. Somos desafiados a romper com a letargia da vida comum e abraçar um caminho de transformação pessoal e social, por meio de nossas ações e escolhas conforme indica o Mestre.

Cabe perguntar: qual a minha condição neste momento: de morto-vivo, ou de vivo-morto?

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Francisco Alves Mendes Filho, foi um seringueiro, sindicalista, ativista político brasileiro. Lutou a favor dos seringueiros da Bacia Amazônica, cuja subsistência dependia da preservação da floresta e das seringueiras nativas.

[2] Apocalipse, 3:16-18: Assim, porque és morno e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca.

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