A melhor maneira de morrer é viver intensamente a vida instante a instante.
A ideia trazida pela frase acima é muito antiga – quando o latim ainda era língua viva em que se dizia carpe diem.[1]
Em oposição à ideia de “vidas sucessivas” temos as “mortes sucessivas” e estas são tão importantes e variadas quanto às primeiras; por esta simples constatação é preciso associar ambas ao cardápio da existência.
Em nossa existência, há aquelas mortes diárias, semanais, mensais configuradas na separação, na demissão inesperada, na frustração de algum projeto; e há aquelas que ocorrem uma vez só e fim.
É inevitável não lembrar de Haroldo de Campos nos versos “Nascemorre”:
Todo reencarnacionista sabe que as vidas sucessivas – nesse vaivém indefinido como sugerem os versos acima - treinam o espírito em variados exercícios para o desenvolvimento da musculatura do caráter. Um deles, que deixa a gente bastante dolorido é o danado do exercício do desapego. A “musculatura” dói mais do que depois de uma prova chamada Ironman[2].
Eita coisa difícil é o desapego!
Quando
pensamos que conseguimos nos desapegar de tudo, descobrimos que estamos
apegados ao exercício intelectual do desapego. Na vida, gostamos muito desses
oxímoros.[3]
Esse tipo de “desapego” pode ser confundido com negligência - desleixo pode assumir a aparência de desapego.
O
desapego autentico é filho da modéstia; ele surge pela ação discreta e não por
quereres mentais: Querer sem ação é chover no molhado. Já dizia o grande
Aristóteles: a virtude verdadeira se dá na ação.
O verdadeiro desapego não tem grandes arroubos de visibilidade: a vaidade adora o destaque.
O
apego é grudento. Tem um jeito de supercola. Há quem doe alguns objetos e,
psicologicamente, não desgruda do que doou. Procura saber o que foi feito
daquilo que deu. É um inferno, porque nem sempre a doação terá o destino e a
valoração que se esperava por parte daquele que recebeu a doação. Isso acaba
provocando ressentimento no doador, quando não arrependimento em ter doado.
Por isso ando ressentido e arrependido (risos).
Os que se deteram um pouco mais neste tema, sabem que o desapego mais difícil é o do eu.
O “euzinho” insiste em fincar raízes aonde não há solo tangível; e é essa intangibilidade que o torna mais difícil de superar.
O “euzinho” rega esse solo do apego, insistentemente, com mimos e desespero diante da fúria do tempo que, constantemente, acena para perdas, frustrações inimagináveis.
O eu tenta distrair-se da pesada realidade que, inexoravelmente, o cerca e que bate à porta, dizendo como os antigos: memento mori[4] - expressão latina que significa “lembre-se que você deve morrer”.
O
caminho mais fácil são os ansiolíticos (e aqui não faço nenhum juízo moral - há
quem precise, de fato, de medicalização). O caminho mais árduo é o da
observação constante de nossos movimentos mentais numa convivência dinâmica com
aquilo que é, e não com o que deveria ser.[5]
Por estas razões, pensar nas mortes sucessivas é um lembrete que incomoda muita gente. Mais do que dois elefantes.[6]
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] A expressão "carpe diem" vem do poeta romano Horácio, que a
usou em seu poema "Odes" (23 a.C.). A frase completa é "carpe
diem, quam minimum credula postero", que se traduz como "aproveite o
dia, confiando o mínimo possível no amanhã". A ideia central é valorizar o
presente e aproveitar o momento.
[2] Ironman é uma prova olímpica
dificílima: o atleta deve nadar 3,8 quilômetros, deve pedalar 180 quilômetros e
correr 42 quilômetros.
[3] Oxímoro é uma figura de
linguagem que combina, numa frase, palavras de sentido oposto. Neste texto,
essa figura aparece no apego ao desapego.
[4] A expressão "memento mori" tem raízes na filosofia estoica e
na cultura romana, e seu significado é "lembre-se de que você deve
morrer". Embora não possa ser atribuída a uma única pessoa, ela era um
lembrete comum na antiguidade sobre a mortalidade e a brevidade da vida. O
conceito foi amplamente utilizado por filósofos, artistas e na literatura ao
longo da história.
[5] Sugiro a leitura de “Sobre a brevidade da vida” do pensador romano e filósofo estoico Lúcio Aneu Sêneca. (4? a.C. – 64 d.C.)
[6] Para quem não sabe, faço alusão a uma cantiga conhecida como “cantiga
cumulativa” onde se canta: um elefante incomoda muita gente, dois elefantes
incomodam muito mais...
Acomodado
ResponderExcluirdado
Incomodado
dado
Ambos têm os seus riscos se optarmos por apenas um deles.
É positivo o incômodo porque nos obriga a sair dele e ir atrás do que nos traga bem estar.
Naturalmente buscamos nos acomodar ao novo, à posição confortável e, para tal, damos de nós movimento, atenção, interesse, a fim de encontrarmos a comodidade almejada.
Invariavelmente chega o instante no qual nos saturamos dessa posição que torna-se enfadonha e, nesse intuito, lá vamos nós darmos a nossa energia para sair do desconfortável.
Nesse vai-e-vem de cômodo&incômodo estende-se o nosso apego&desapego.
Ora lá, ora cá. Ora fraco, ora forte. Ora sim, ora não. A vida é cíclica, e dual.
Assim estamos, a cada encadernação, sendo os autores das nossas próprias jornadas, sejam épicas, líricas, românticas, dramáticas, poéticas, filosóficas, artísticas, aventureiras, que seja.
Páginas e páginas vividas, em linhas autênticas, como treinos à condição de abrirmos mão do nosso ego, conforme lemos em João 21:22:
"Que te importa a ti, segue-me tu?”