Pular para o conteúdo principal

AMAR DÁ TRABALHO

Ao ler o texto “A última ejaculação” (link abaixo), uma amiga escreveu:

https://espiritismosec21.blogspot.com/2024/10/a-ultima-ejaculacao.html

Como é difícil amar nossos inimigos.

Será que um dia muito, muito distante, nós terráqueos conseguiremos?

Sim, porque simplesmente amar dá trabalho e sempre haverá riscos de sofrimento por parte de quem ama, imagine amar os inimigos!

Se quiser, ouça a canção Velas Içadas de Ivan Lins/Vitor Martins que explica a condição daqueles que, com receio de sofrer, evitam o amor. (link abaixo)

https://www.youtube.com/watch?v=ond7DKduVGI&list=RDond7DKduVGI&start_radio=1

Velas Içadas

Seu coração é um barco de velas içadas
Longe dos mares, do tempo, das loucas marés
Seu coração é um barco de velas içadas
Sem nevoeiros, tormentas, sequer um revés

Seu coração é um barco jamais navegado
Nunca mostrou-se por dentro, abrindo os porões
Seu coração é um barco que vive ancorado
Nunca arriscou-se ao vento, às grandes paixões

Nunca soltou as amarras
Nunca ficou à deriva

Nunca sofreu um naufrágio
Nunca cruzou com piratas e aventureiros
Nunca cumpriu o destino das embarcações

Embora seja inegável que possuímos a capacidade de amar, entendo que, para nós humanos, amar tem gradações: nosso amor por nossa namorada diferencia-se do amor pela mesma pessoa após 20 anos de casamento com ela; nosso amor por nossos filhos – quando os temos -, se diferencia entre um e outro, apesar da mentira que contamos para nós mesmos de que os amamos igualmente (não dá para amar igualmente pessoas diferentes, comportam-se de forma diversa, foram construídos em épocas diferentes – a não ser no caso de gêmeos); nosso amor por nossos pais modifica-se à medida que o tempo passa; nosso amor pelo trabalho sofre transformações constantes não só pela mudança de emprego, mas, especialmente, na mudança de cargos. Toda essa transformação está contida no pensamento do antigo filósofo grego que viveu antes de Cristo – Heráclito de Éfeso. A coisa não é simples.

No caso do “amar os inimigos”, para nós – seres em construção e cheios de pendências existenciais -, é mais complicado ainda; exige um grande empenho. Nesse caso específico, temos de entender o amor em outra chave: a da compreensão.

Alguém muito sábio – que não me lembro quem - já disse: o amor é a quintessência da compreensão.

Quintessência, para quem não sabe, entre outras definições, é o que há de melhor, de mais apurado, importante ou excelente; grau mais elevado, ou melhor, de alguma coisa; essencial.

Neste caso, apesar da distância em que estamos desse amor sublimado, há uma boa chance de amarmos os nossos inimigos, compreendendo-os o quanto possível.

Esse estágio de compreensão exige muito trabalho para o atingirmos. Não esforço, porque o esforço – como a própria palavra já diz – traz a ideia de “forçamento”. Todo aquele que se esforça para estudar, por exemplo, tem boa chance de alcançar o que quer; mas no caso dos afetos, é diferente.

Os afetos não se submetem a forçamentos. Toda vez que me esforço em não odiar alguém, tenho, necessariamente, de lembrar desse alguém; e ao trazê-lo à lembrança, inescapavelmente lembro do que ele me fez de mal para odiá-lo. Esse processo torna-se um círculo vicioso e sem previsão de fim, ou seja, quanto mais me esforço para perdoar o meu ofensor, mais e mais me distancio de perdoá-lo e a mágoa se potencializa.

Também, não se trata de “esquecer” a ofensa. Esse é outro mecanismo de autoengano que impomos a nós mesmos, porque não damos conta de esquecer. Numa linguagem mais técnica, dizemos que todas as experiências boas ou más são indeléveis ao espírito.

Por fim, compreender não é o mesmo que aceitar ou condescender ao que o outro faz ou deixa de fazer.

Portanto, o caminho para amar os inimigos é o da compreensão. Dou um exemplo:

Ao ser crucificado – um tipo de morte acompanhada de dor superlativa -, o Mestre declarou perdão aos seus algozes porque não sabiam o que faziam. Ele tinha compreendido os limites mentais, espirituais daquela gente que o havia condenado, por isso os perdoou. Em outras palavras, amou os seus inimigos por compreendê-los.

Difícil? Quem disse que seria fácil?

 

Comentários

  1. A questão de inimizade comporta a seguinte indagação: quem é o ofensor e quem é o ofendido? Seria o primeiro um inimigo ativo e este passivo, porque foi objeto da ofensa, da difamação, do ultraje etc? Então, cabe àquele o justo e presumido dever de compreender e perdoar. Mas na inimizade essa lógica passa longe; até porque surge uma segunda indagação: qual a origem da ofensa, do ultraje, da difamação? Como de costume, irmão Humberto, você mostra sua notável capacidade de nos fazer apreciar demais os seus textos. Abraço.

    ResponderExcluir
  2. Estamos ensaiando...

    "Em sua origem, o homem só tem instintos; quando mais avançado e corrompido, só tem sensações; quando instruído e depurado, tem sentimentos. E o ponto delicado do sentimento é o amor, não o amor no sentido vulgar do termo, mas esse sol interior que condensa e reúne em seu ardente foco todas as aspirações e todas as revelações sobre-humanas." (Evangelho segundo o espiritismo, cap. XI).

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Tempus Fugit - Rubem Alves

O que me motivou a homenagear o "Seu" Ary imediatamente à sua morte, deve ter sido inspirado no texto que segue abaixo somado à gratidão guardada vivamente em minha alma. Não sei, mas posso ser punido por publicar crônica de autoria de Rubem Alves Tempus Fugit , Editora Paulus, 1990, mas valerá o risco. TEMPUS FUGIT Rubem Alves Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas. De dia, tudo era luminoso, mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar e suas mús...

CORONAVÍRUS E A TRANSIÇÃO PLANETÁRIA

Depois da espanhola [1] e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão. A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia. Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 13/04/2020 Por mais hedionda seja a figura de Joseph Goebbels [2] recentemente foi elevada ao status de máxima da sabedoria sua frase: “uma mentira contada muitas vezes acaba se tornando uma verdade”. É óbvio que se trata de uma armadilha, de um sofisma. No entanto, é plausível que se pense no poder dessa frase considerando como uma verdade baseando-se na receptividade do senso comum,   independentemente de cairmos no paradoxo de Eubulides ou de Epimênides [3] . ...

O INFERNO E A QUARENTENA

Há uma peça para teatro escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre intitulada “Huis Clos” mais conhecida entre nós pelo título “Entre Quatro Paredes” onde Sartre explora, entre outros, o tema da liberdade – tema tão caro ao pensamento desse filósofo. A peça é encenada em um apartamento que simboliza o Inferno onde três personagens interagem com a figura de um quarto – o criado. Não interessa aqui explorar a peça em todas as suas complexidades, mas de chamar a atenção para a fala do personagem Garcin que, ao fim da peça, exclama: “o Inferno são os outros”. Há quem diga – gente com repertório imensamente maior do que o meu -, que devemos entender que “os outros” não são o inferno, mas nós é que somos o inferno. [1] Esse tema traz muitas inquietações àqueles que pensam a vida de forma orgânica, não simplista. Meu palpite é que a frase de Garcin confirma para mim o que desconfio: que os outros são o inferno, porque o outro, a quem não posso me furtar da companh...

PAUSA PARA OUVIR - Chopin 2

Frédéric François Chopin 01/03/1810 - 17/10/1849 Piano Concerto No.1, Movimento 2 - Largo, Romance

A REDENÇÃO PELO SANGUE DE UM CAVALO

No último texto postado falei do “sangue de barata”. Desta vez, ofereço-lhes um texto o qual tive contato pelo meu filho Jonas no fim dos anos 90. A autoria é de Marco Frenette. Nele, Frenette fala do poder do sangue de um cavalo. Nota: o tamanho do texto foge do critério utilizado por mim neste espaço que é o de textos curtos para não cansar   a beleza de ninguém. CAVALOS E HOMENS Marco Frenette Revista Caros Amigos, setembro 1999. Essa short cut cabocla está há tempos cristalizada na memória coletiva de minha família, e me foi contada pela minha avó materna. Corria o ano de 1929 quando ela se casou, no interior de São Paulo, com o homem que viria a ser meu avô. Casou-se contra a vontade dos pais, que queriam para a filha alguém com posses compatíveis as da família, e não um homem calado, pobre e solitário, que vivia num casebre ladeado por uns míseros metros quadrados de terra. Minha avó, porém, que era quase uma criança a época, fez valer a força de sua pers...

A QUEIMA DO "EU"

Estimado Humberto, o feliz destaque "[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do "eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a "[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do "eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência" (Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador? Samuel Prezado irmão Samuel, obrigado pela sua companhia. É uma honra tê-lo aqui. Sem dúvida há uma relação entre Nietzsche e...

PAUSA PARA OUVIR - Rameau

Jean-Philippe Rameau 25/09/1683-12/09/1764 https://www.youtube.com/watch?v=fbd5OAAN64Y

BUSCA

Somos humanos, demasiadamente humanos [1] e nossa humanidade baseia-se na linguagem. Isso é evidente. Qualquer tipo de busca, por exemplo a “humildade”, está fadado à frustração. A busca pressupõe algo vindo da razão e esta tenta criar conceitos em tudo o que busca. A razão utiliza o artifício da comparação e os afetos não funcionam assim. Toda vez que me comparo com alguém, na verdade estou comparando algo que conheço pouco – eu mesmo, com algo que não conheço nada – o outro. Mas o conceito vem carregado de cultura, e a cultura é produto da linguagem, e a palavra é o tijolo da construção conceitual, nunca a coisa em si. Enquanto a razão busca a palavra “humildade” que é intenção, a vivência é o gesto. E sabemos, segundo Rui Guerra: há distância entre ambos. [2] . Enquanto a vida é vertiginosamente dinâmica – tudo que é agora, não será o mesmo no segundo seguinte, a palavra é a tentativa de manter-se aquilo que escapa por entre os dedos; é a esperança angustiada de eternizar-s...