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A MORTE DA GRATIDÃO

Toda vez que alguém evoca o “direito de” quando recebe ajuda, automaticamente desaparece no horizonte qualquer sinal de gratidão, porque se, de fato, há direito, não é necessário agradecer. 

O inverso é verdadeiro: toda vez que alguém oferece ajuda e espera gratidão, anula-se a noção de direito do outro, gerando uma sutil noção de favor feito, de esmola dada que pode, eventualmente, desumanizar aquele que recebe.

Com esse dilema posto, podemos calcular o tamanho do desafio proposto pelo Mestre ao dizer: não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita.[1]

Suspeito que, se déssemos com as duas mãos, evitaríamos conflitos internos e, quem sabe, menos constrangimento àquele que recebe. Mas isto é só uma conjectura com o verbo “dar” flexionado no pretérito imperfeito do Subjuntivo[2].

A busca por um novo paradigma, que valorize a gratuidade, a compaixão e o reconhecimento mútuo, se torna um desafio urgente. É preciso questionar o individualismo exacerbado, ressignificando o conceito de justiça social e promovendo a construção de uma comunidade mais justa e fraterna.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Entretanto, quando você cuidar dos necessitados, que a sua mão esquerda não saiba o que está fazendo a mão direita, de forma que você preste ajuda em secreto. E o seu Pai, que vê o que é feito em secreto, o recompensará. Jesus.

Mateus, 6:3-4.

[2] Significado de Subjuntivo: diz-se do modo verbal caracterizado por expressar uma dúvida, uma possibilidade, um desejo ao invés de uma certeza, ou seja, expressa uma ação irreal e hipotética.

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