Arte: Tiago Spina
*Timeline em inglês significa linha do tempo.
"Pensar com o fígado" é pensar com mau humor.
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De
repente, tracei um paralelo entre o trabalho no qual me dediquei, por muitos anos,
em diversos escritórios e o trabalho de gente que construiu as pirâmides do
Egito.
Mesmo
com todo o anonimato dos escravizados que construíram aqueles túmulos faraônicos, o
seu legado está marcado naquelas pedras e paredes.
E eu, funcionário burocrático, debaixo de lâmpadas fluorescentes, anos a fio? O que sobrou?
Trabalhei
muitos anos com contabilidade, dados de desempenho, planilhas de custos/compras/vendas.
Notas
fiscais às dezenas que passaram pelas minhas mãos e pela minha constante
atenção, atrás de escrivaninhas dotadas de muitas gavetas e canetas de variadas
cores.
O que se destaca dessas memórias são os carimbos. Ah! Os carimbos, como eram importantes os carimbos seguidos de vistos – do executor do serviço, do subchefe, do chefe, do gerente, do diretor e, por fim, do chairman[1].
E me pergunto, hoje, do alto de minha aposentadoria que já vai longe: onde estão todos esses instrumentos? Em que lugar estão todos aqueles “importantes” documentos de aferição de custos e desempenho?
Diferentemente de minha companheira que foi professora de “prézinho” – como eram chamadas as professoras de pré-escola, e os escravizados construtores de pirâmides, não guardo nada do que fiz. Pudera, eu era apenas um dente de uma engrenagem da máquina de moer carne – o burocrático caminho para o nada.
Onde foi parar toda a energia colocada naqueles papeis e no ato de carimbar de um Sísifo moderno[2]?
A palavra que me ocorre à mente é: pó. Nada daquilo será visto, tateado, sentido, admirado pelas gerações futuras.
De que valeu todo aquele esforço, a não ser o valor imediato do holerite e da sobrevivência num mundo marcado pela burocracia, a alienação e o tédio.
E não é só no trabalho que as coisas ocorrem:
.
Na vida social: sempre os mesmos churrascos, as mesmas piadas, as mesmas
conversas e o mesmos domingos que precedem a segundas-feiras.
.
Nas compras de supermercados – sempre as listas feitas com esmero para
não exceder o orçamento; das difíceis escolhas diante de 132 marcas de molhos
de tomate; das filas intermináveis para passar no caixa onde um automático “bom
dia” lhe escapa da boca, após passar pelo corredor polonês[3]
onde as crianças agarram e berram por doces que não constavam da lista.
.
Nas férias: onde não importam horas e horas a fio observando o mar de
carros que esperam por passagem à sonhada praia lotada e suja pela presença
humana.
.
Dos certificados de cursos que fizemos, às pencas, que guardamos com
orgulho naquela pasta no fundo do armário, que o tempo amarelou e já não valem
mais nada.
. Nos templos com as mesmíssimas preces chorosas; longos, e não raro, hipócritas agradecimentos a Deus e aos santos pela vida que se tem. Domingo após domingo. Palestra após palestra que dá vertigem em pensar.
Nossa vida, geralmente, não tem tutano[4], não possui recheio. Ligamos o piloto automático e seguimos em frente como zumbis produtivos eufemisticamente chamados de colaboradores[5].
Haja ansiolítico[6] para conter a sensação de vazio.
Neste instante de reflexão, é inevitável não pensar em Emil Cioran[7]:
O problema não é saber se há vida depois da morte; mas se há vida antes da morte.
E você, o que faz para lembrar e ser lembrado?
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Chairman: expressão em inglês
que significa o presidente.
[2] Sísifo: rei lendário de Corinto
que, ao morrer, recebeu o castigo de carregar uma pedra até o alto de uma
montanha e, lá chegando, a pedra rolava para o lugar de origem. A pena de
Sísifo era eterna. Por extensão, o trabalho de Sísifo representa tarefas
repetitivas, entediantes e sem fim previsto.
[3] Para quem não sabe, corredor
polonês é estreita passagem margeada por duas fileiras de pessoas que
aplicam castigos físicos àqueles que são obrigados a percorrê-la. Faço uso da
expressão como uma técnica de merchandising para representar aqueles
corredores cheios de doces localizados estrategicamente na entrada dos caixas e,
ficam na altura do olhar das crianças, as quais não possuem a menor ideia de
quanto de dinheiro os pais têm nos bolsos. Nessas condições, instala-se o
conflito e para que o berreiro termine, os pais se veem constrangidos a
comprar.
[4] Tutano: matéria que preenche
as cavidades ósseas; aquilo que está por dentro de algo.
[5] Modernamente, os funcionários de uma empresa são chamados de colaboradores.
Uma técnica para envolver os empregados proporcionando-lhes a sensação de pertencimento.
[6] Ansiolítico: remédio que atua
na diminuição da ansiedade e no alívio de tensões.
[7] Emil Cioran: filósofo romeno
conhecido pela visão pessimista da vida e do mundo.
Mas a arte nos salva dessa mesmice. Sem falar dos afetos e momentos memoráveis de amizade e amor.
ResponderExcluirMinha atual cronologia existencial:
ResponderExcluirpriorizar o E no lugar do OU.
Cara e coroa.
Quantidade e qualidade.
Tédio e passatempo.
Plantio e colheita.
Hábito e eventualidade.
Descrença e esperança.
Desafio e crescimento.
Deslize e aprendizado.
Perda e ganho.
Chronos e kairós.
Falar e silenciar.
Ouvir e rir.
Ler e escrever.
Agregar e distanciar.
Sonhar e acordar.
Idealizar e concretizar.
Descobrir e difundir.
Desconfiar e acreditar.
Esquecer e aprender.
Descansar e trabalhar.
Arte e filosofia, sempre.
Começar e terminar, amiúde.