
Fonte: Jornal da USP – Campus Ribeirão Preto - SP
(Ao saber da morte do Toninho L*)
Há pessoas que passam pelo
palco de nossa existência deixando marcas profundas tanto do ponto de vista
positivo quanto negativo. Isso é natural.
Acontece que não fazemos ideia da rede intrincada da vida que nos cerca.
Se quiser, ouça Caetano
Veloso em Cajuína[1]. Link abaixo:
Muitos “Toninhos” passaram pelo meu caminho, além de uma Toninha.[1]
Eu e o Toninho tomamos caminhos diferentes. Não há juízo de valor nos caminhos tomados por mim e por ele; até porque não nos víamos há muitos anos. Soube, hoje, do seu passamento. Em seu caso, deixou memórias afetivas que, de certa maneira, marcaram minha vida. Algumas delas trágicas, outras cômicas, as quais não me deterei neste texto.
Devo confessar que o invejava em certo grau, não por conta de seu hábito em consumir bebidas, de fumar e do uso de drogas psicoativas. Só hoje fui entender que minha inveja focava na liberdade que mostrava diante de uma comunidade minúscula onde vivíamos naqueles tempos de juventude. Naquele tempo, eu me comportava de maneira contida. Sempre tive uma intolerância física às bebidas e ao cigarro.
Ficava intrigado com a forma despreocupada e livre com que ele vivia, numa cidadezinha provinciana, quase rural do interior do estado de São Paulo. Quando o conheci e convivi, Toninho, em sua maneira de viver, representava o extremo oposto de minha vidinha atormentada pela culpa, cuja educação religiosa recebida me impedia, pelo medo, de avançar o sinal.
O abafamento de pulsões naturais do ser humano feita pela ideia de culpa e castigo pode acarretar problemas futuros – o recalque de hoje pode ser a explosão incontrolável de amanhã.[2]
Ele me parecia alguém que desafiava as regras do jogo social; alguém que vivia fora daquele espaço-tempo. Livre e sem o compromisso de parecer o moço bom e casadoiro. Mostrava pouco apreço pelo olhar e julgamento alheio – que numa comunidade pequena, está sempre atento ao que os outros fazem, ou deixam de fazer. Parecia que o seu superego não dava conta de conter os impulsos vindos do Id[3]. Em outras palavras: seu sistema límbico bombardeava com tanta intensidade o seu córtex pré-frontal que este sempre era nocauteado[4].
Por conta de algemas mentais pelas quais fui submetido, minhas atitudes pautavam-se pelas regras mais rígidas da moral espírita-cristã onde cresci. Meu esforço direcionava-se, o tempo todo, àquelas máximas, mesmo que um mal-estar estivesse presente na minha alma.[5] Constantemente, me via caindo em “pecado” somando mais culpa à minha pobre alma. Tudo isso causava em mim um mal-estar que apontava algo que não funcionava bem comigo e minhas circunstâncias, como diria Ortega y Gasset[6].
Suspeito que, com o Toninho, esses incômodos da alma não aconteciam. Não tinha as neuroses próprias de indivíduos que, como eu, estrebucham e tremem diante do medo do “pecado”, mas com um vulcão interno pronto para uma erupção de grandes proporções[7].
(É
comum ouvirmos a expressão: “nossa, fulano era tão calmo e, de repente, perdeu
a paciência!”
O sujeito paciente não perde a paciência. Aquele que a “perde” demonstra que nunca a teve de verdade; finge tê-la por interesse, mostrando-se calmo para ganhar a admiração dos que o cercam.)
Não preciso dizer que a sociedade que compunha aquele pequeno município e suas más línguas, falavam dele como alguém disruptivo - um infrator pecaminoso; um transgressor.
Desconfio que esses moralistas também o invejavam por representar aquela liberdade humana que eles não possuíam dentro das grades das prisões conceituais carcomidas pelo tempo em que viviam.
Ouso dizer que, muitos daqueles que o enxergavam como um “fora da lei” e que supunham viver “dentro” das regras rígidas impostas por uma sociedade moralista, talvez, não sei, precisarão da ajuda do Toninho quando deixarem este mundo. Suspeito, eu também.
Sabe por quê?
Porque bebês, loucos e “pecadores” confessos são motivo de festa no mundo espiritual quando para lá retornam. Lá, serão bem vindos à “casa do Pai”, assim como disse Jesus em sua parábola do Filho Pródigo.[8]
Alguém comenta:
Do jeito que você escreve, dá a impressão de endossar atitudes pouco ou nada construtivas.
Meu
foco está em refletir a nossa miopia espiritual diante da Vida e como essa
visão prejudica nosso julgamento, bem como relativizar as historinhas colocadas
em livros espíritas de autoajuda cuja métrica salvacionista baseia-se no medo
do pecado e do subsequente castigo. Nem mesmo sabemos do porquê existimos e o
próprio existir: a que será que se destina? Como diz Caetano Veloso, em
Cajuína.
E
sejamos humildes: a Doutrina Espírita não foi capaz de responder a essa
pergunta. Aliás, nem a conjecturas ontológicas da Filosofia[9]
e muito menos a epistemologia da Ciência[10].
Como sabemos a resposta está além das possibilidades humanas, pelo menos por enquanto.
Também, para pensar que a régua da Justiça Divina é muito diferente da régua de nossa “justiça” punitivista. A justiça humana ainda não conseguiu ultrapassar a dos escribas e fariseus.[11]
Descanse em paz, velho companheiro Toninho L*.
[1] Minha companheira chama-se Antônia e eu a trato, desde sempre, de
Toninha.
[2] O recalque se dá por conta de uma carga emocional muito intensa
que é contida num dado momento, mas pode, no futuro, se manifestar em grandes
explosões emocionais incontroláveis, porque são liberadas pelo inconsciente – instância
onde se situam os recalques.
Ver “O Conceito de Repressão”,
Sigmund Freud, Obras Psicológicas Completas.
[3] Id e Superego,
além do Ego, são instâncias que compõem o aparelho psíquico, segundo a
Psicanálise. Resumidamente, o Id seria o elemento no qual funcionam
nossos desejos e instintos; a Libido. Superego é uma estrutura psíquica
que contém valores morais que regulam e contêm os avanços do Id.
[4] Em Neurociência, o Sistema Límbico é uma região do cérebro responsável
pelas emoções; enquanto o Córtex Pré-Frontal é também uma região do
cérebro que cumpre o papel de controlar aquelas emoções vindas do Sistema
Límbico e dosar esses impulsos.
[5] Sugiro ler o ensaio Mal-Estar na Civilização de Sigmund Freud.
[6] José Ortega y Gasset foi um importante
filósofo espanhol, autor da célebre frase: eu sou eu e minha circunstância,
se não a salvo a ela, não me salvo a mim.
[7] Em rápidas palavras, a neurose se apresenta como o
conflito entre os desejos e os limites impostos a esses desejos. O quadro se
apresenta quando tentativas em satisfazer aqueles desejos são ineficazes.
[8] Evangelho de Lucas, 15:11-32. A citada parábola conta a história do
filho que pediu ao pai todo o dinheiro a que tinha direito de herança. Em
seguida, sai para o mundo e gasta todos os recursos em farras. Ao perder tudo,
se vê numa situação de mendicância e volta para a casa do pai, que o recebe com
braços abertos e organiza uma grande festa para celebrar a volta do filho pródigo.
[9] Ontologia: ramo da Filosofia
que investiga o ser.
[10] Epistemologia:
ramo da Filosofia que procura entender e diferenciar os diferentes saberes. O
conhecimento.
[11] Alusão ao que disse o Cristo aos seus discípulos: porque vos digo
que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum
entrareis no Reino dos Céus. Mateus, 5:20.
[1] Caetano compôs Cajuína
diante da perplexidade da morte de um jovem amigo. Ao visitar o pai do rapaz,
em Teresina, além de dar-lhe uma flor ofereceu-lhe um refrigerante típico do
nordeste – a Cajuína.
O espiritismo, a filosofia, a epistemologia da ciência, a literatura, a arte, a poesia, a música, a religião, as várias áreas humanas, ao longo dos milênios, têm perguntado e, claro, têm se prestado a responder a que se destina o existir.
ResponderExcluirForam capazes em suas limitações, fruto da época e da cultura, de formular uma explicação racional.
Não há uma resposta ponto final, universal. É bem diferente de dizer não foram capazes.
"Além das possibilidades humanas"!?! Mas são justamente os próprios seres em suas capacidades intelectuais e morais que têm elaborado indagações e teses a respeito.
Não advirá por outra fonte.