Pular para o conteúdo principal

O BENEFÍCIO DA DÚVIDA

De acordo com Sexto Empírico, médico e filósofo grego do século II, alguns creem que a verdade não pode ser apreendida. Outros pensam que encontraram a verdade: esses são os dogmáticos. Os céticos continuam a procurar.

Do livro O Pensamento Crítico – O poder da lógica e da Argumentação.

Walter A. Carnielli e Richard L. Epstein.

Editora Rideel

 +++++++++++++

Muita gente - muita mesmo, procura certezas na vida. Não acho que isto seja um problema. Quem não carrega uma certa carga de insegurança? Aqueles que afirmam não serem inseguros estão mentindo.

Além disso, essa busca por certezas tem o potencial de causar estragos no psiquismo pelas frustrações advindas dessa conduta. É comum sermos surpreendidos pela contingência[1]: desastres naturais; morte súbita de pessoas queridas; a perda daquele sonhado emprego onde apostamos todas as nossas fichas; a promoção que não veio; o amor rejeitado; a separação dolorosamente apresentada pela companheira/companheiro; o diagnóstico de uma doença complicada, etc.

Frustrações fazem parte do cardápio humano, tanto aqui na Terra quanto no mundo espiritual. Quanta gente que passa os portais da morte e se espanta com as surpresas que as aguarda! Surpresas nada agradáveis para miolinhos egocentrados[2].

Já disse em outro momento que não gosto de ficar pensando no que virá depois da morte. Chego a pensar que esse tipo de expectativa é cultura inútil. Jesus advertiu: Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.[3]

O que é, é e não o que achamos que deveria ser. Aprendi a lidar com essa realidade pelas minhas leituras de Krishnamurti e Ubiratan Rosa[4]. Contudo, como num mecanismo de defesa, eu costumo supor que minha situação, depois da morte, não será muito boa. Como não sou besta, sigo a aposta de Pascal.[5]

Por esta razão, eu disse que as escolas espíritas deveriam botar em seus currículos mais ceticismo e menos crença. Mais Atenas e menos Jerusalém[6].

Pela definição de Sexto Empírico, sou cético, pelo menos no estado mental em que me encontro hoje. E estou contente assim.

Desconfio de gente que profere palestras, escreve livros afirmando que a verdade é isso e aquilo. E, para mim, não importam as cores ideológicas que essa gente carrega.

É oportuno lembrar, mais uma vez, Emil Cioran[7]: “o convicto é aquele que não aprofundou nada”. É simples e imediato entendê-lo: quando nos aprofundamos no estudo de alguma coisa, mais percebemos o quanto estamos distantes da verdade última. Por esta razão, o grande Sócrates dizia que o que sabia era que nada sabia. Com esta afirmação, o sábio grego – tido como Pai da Filosofia – indicava que carregava mais suspeitas do que certezas.

Quanto mais o horizonte do conhecido se amplia para mim, aquilo que está além do horizonte – o desconhecido - se amplia também.[8]

Este estado “cético” me faz sentir mais livre, porque não tenho a obrigação de crer nesse ou naquele conceito, ou nessa, ou naquela teoria, ou dogmas que me querem enfiar goela abaixo. Também, o ceticismo me faz mais humilde, porque não me arrogo ser possuidor da verdade, seja ela o meu líder político de estimação; o meu time de futebol do coração; minhas ideias tão cheias de convicção.

Quando Pilatos dirigiu-se a Jesus, perguntando-lhe: “O que é a verdade?”, Jesus silenciou – pelo menos é o que o texto indica[9]. Esse silêncio do divino Mestre calou fundo na minha alma e me habita para sempre.

E Krishnamurti completou essa lição de Jesus dizendo aos seus seguidores que “a verdade é uma terra sem caminhos”.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Contingência: é tudo aquilo que está fora de nosso controle; o imprevisível.

[2] Egocentrado: alguém que toma a si próprio como referência para tudo, ou que se preocupa unicamente consigo mesmo.

[3] Mateus, 6:34

[4] Jiddu Krishnamurti (1895-1986): Pensador indiano, autor de vários livros. Ubiratan Rosa (1927-2022): escritor, jornalista, dicionarista brasileiro.

[5] Blaise Pascal (1623-1662): filósofo, teólogo, inventor, matemático francês. Sua “aposta” é uma proposta argumentativa filosófica que, em resumo, diz o seguinte: é melhor apostar na existência de Deus – e aqui acrescento a vida depois da morte – do que apostar na não existência de Deus e no nada. Se ganhar a aposta, ganha tudo; se perder, não perde nada.

[6] A expressão Mais Atenas e menos Jerusalém aqui empregada não carrega juízo de valor. Quer dizer que devemos funcionar mais com a razão do que com crenças.

[7] Emil Cioran (1911-1995): filósofo e escritor de origem romena radicado na França. Além de ser um pensador pessimista, foi ligado ao Niilismo e ao Cinismo.

[8] Entre as obras que falam sobre este argumento, cito uma do físico e escritor brasileiro Marcelo Gleiser – Ilha do ConhecimentoOs limites da Ciência e a busca por sentido.

[9] João, 18:38

Comentários

  1. Continuo bebendo o néctar dos deuses dos seus textos. E sempre apendendo.

    ResponderExcluir
  2. Corroboro o que escreveu. Tenho por mim que a dúvida é sinal de inteligência. Quem não a tem? Ainda bem que ela faz parte da nossa natureza humana, porque nos incita a irmos em busca de respostas, que por sua vez poderão se tornar novas incertezas, e assim por diante. Em outras palavras, estamos constantemente atualizando os nossos conhecimentos e, com isso, inferindo o quanto desconhecemos muito, mas muitos assuntos.

    Mais uma vez, recorro ao inspirado e criativo poeta Manoel de Barros e extraio do livro "Memórias inventadas" (ed. Alfaguara, 2018), o seguinte poema:
    Tratado geral das grandezas do ínfimo

    A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
    Meu fado é o de não saber quase tudo.
    Sobre o nada eu tenho profundidades.
    Não tenho conexões com a realidade.
    Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
    Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
    Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
    Fiquei emocionado.
    Sou fraco para elogio.



    Sou fraca para certezas. E muito mais para o pleonasmo 'certeza absoluta'. S.O.S.!!!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

CORONAVÍRUS E A TRANSIÇÃO PLANETÁRIA

Depois da espanhola [1] e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão. A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia. Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 13/04/2020 Por mais hedionda seja a figura de Joseph Goebbels [2] recentemente foi elevada ao status de máxima da sabedoria sua frase: “uma mentira contada muitas vezes acaba se tornando uma verdade”. É óbvio que se trata de uma armadilha, de um sofisma. No entanto, é plausível que se pense no poder dessa frase considerando como uma verdade baseando-se na receptividade do senso comum,   independentemente de cairmos no paradoxo de Eubulides ou de Epimênides [3] . H

O INFERNO E A QUARENTENA

Há uma peça para teatro escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre intitulada “Huis Clos” mais conhecida entre nós pelo título “Entre Quatro Paredes” onde Sartre explora, entre outros, o tema da liberdade – tema tão caro ao pensamento desse filósofo. A peça é encenada em um apartamento que simboliza o Inferno onde três personagens interagem com a figura de um quarto – o criado. Não interessa aqui explorar a peça em todas as suas complexidades, mas de chamar a atenção para a fala do personagem Garcin que, ao fim da peça, exclama: “o Inferno são os outros”. Há quem diga – gente com repertório imensamente maior do que o meu -, que devemos entender que “os outros” não são o inferno, mas nós é que somos o inferno. [1] Esse tema traz muitas inquietações àqueles que pensam a vida de forma orgânica, não simplista. Meu palpite é que a frase de Garcin confirma para mim o que desconfio: que os outros são o inferno, porque o outro, a quem não posso me furtar da companh

PAUSA PARA OUVIR - Chopin 2

Frédéric François Chopin 01/03/1810 - 17/10/1849 Piano Concerto No.1, Movimento 2 - Largo, Romance

Tempus Fugit - Rubem Alves

O que me motivou a homenagear o "Seu" Ary imediatamente à sua morte, deve ter sido inspirado no texto que segue abaixo somado à gratidão guardada vivamente em minha alma. Não sei, mas posso ser punido por publicar crônica de autoria de Rubem Alves Tempus Fugit , Editora Paulus, 1990, mas valerá o risco. TEMPUS FUGIT Rubem Alves Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas. De dia, tudo era luminoso, mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar e suas mús

A REDENÇÃO PELO SANGUE DE UM CAVALO

No último texto postado falei do “sangue de barata”. Desta vez, ofereço-lhes um texto o qual tive contato pelo meu filho Jonas no fim dos anos 90. A autoria é de Marco Frenette. Nele, Frenette fala do poder do sangue de um cavalo. Nota: o tamanho do texto foge do critério utilizado por mim neste espaço que é o de textos curtos para não cansar   a beleza de ninguém. CAVALOS E HOMENS Marco Frenette Revista Caros Amigos, setembro 1999. Essa short cut cabocla está há tempos cristalizada na memória coletiva de minha família, e me foi contada pela minha avó materna. Corria o ano de 1929 quando ela se casou, no interior de São Paulo, com o homem que viria a ser meu avô. Casou-se contra a vontade dos pais, que queriam para a filha alguém com posses compatíveis as da família, e não um homem calado, pobre e solitário, que vivia num casebre ladeado por uns míseros metros quadrados de terra. Minha avó, porém, que era quase uma criança a época, fez valer a força de sua personal

A QUEIMA DO "EU"

Estimado Humberto, o feliz destaque "[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do "eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a "[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do "eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência" (Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador? Samuel Prezado irmão Samuel, obrigado pela sua companhia. É uma honra tê-lo aqui. Sem dúvida há uma relação entre Nietzsche e

PAUSA PARA OUVIR - Rameau

Jean-Philippe Rameau 25/09/1683-12/09/1764 https://www.youtube.com/watch?v=fbd5OAAN64Y

BUSCA

Somos humanos, demasiadamente humanos [1] e nossa humanidade baseia-se na linguagem. Isso é evidente. Qualquer tipo de busca, por exemplo a “humildade”, está fadado à frustração. A busca pressupõe algo vindo da razão e esta tenta criar conceitos em tudo o que busca. A razão utiliza o artifício da comparação e os afetos não funcionam assim. Toda vez que me comparo com alguém, na verdade estou comparando algo que conheço pouco – eu mesmo, com algo que não conheço nada – o outro. Mas o conceito vem carregado de cultura, e a cultura é produto da linguagem, e a palavra é o tijolo da construção conceitual, nunca a coisa em si. Enquanto a razão busca a palavra “humildade” que é intenção, a vivência é o gesto. E sabemos, segundo Rui Guerra: há distância entre ambos. [2] . Enquanto a vida é vertiginosamente dinâmica – tudo que é agora, não será o mesmo no segundo seguinte, a palavra é a tentativa de manter-se aquilo que escapa por entre os dedos; é a esperança angustiada de eternizar-s