Après nous le déluge, 2010 - Julien Spianti (1982- )
*A expressão (em francês) “Après nous, le déluge” é
atribuída a Madame Pompadour. Traduzida, significa “depois de nós, o dilúvio”
Pelo andar da carruagem, Herculano Pires[1], onde estiver, deve estar inquieto com a forma que alguns intelectuais se referem à religião espírita, a ponto de ser motivo de riso para os que não a conhecem profundamente; e de vergonha alheia para quem sabe da importância que a divulgação dos postulados dessa doutrina poderiam impactar positivamente neste nosso mundo. Luiz Felipe Pondé[2] costuma dizer que a “religião espírita é infantil”.
Alguém pergunta: E você, o que acha da religião espírita posta na mídia e a opinião do Pondé?
Começo pelo fim da pergunta: acho que o Pondé tem razão dado o ângulo e o alcance de sua visão, portanto, guardando as devidas proporções. Ele fala do que vê e não do que estudou de doutrina espírita. Quando vejo alguém criticando ou zombando da doutrina espírita, eu não presto tanta atenção em quem está falando; imediatamente, meu olhar desvia para a qualidade do trabalho de divulgação feita pelos próprios espíritas – porque me interessa mais o que leva a críticas tão depreciativas do que de onde elas vêm.
E essa situação, posta pelo Pondé e outros, piora quando espíritas militantes reagem com argumentos mofados e de acentuado viés de confirmação.[3]
O quadro é desolador. Por esta razão, citei Herculano Pires. Quem lê o livro “O Centro Espírita” de sua autoria, vai notar que, já nos anos 70, ele acusava, picante e veementemente, a conduta dos espíritas de sua época.
E é bom saber que não concordo em muitos pontos com Herculano Pires, sem desprezar a sua rica e significativa obra. Aprendi muito com esse pensador e mestre espírita. Ocorre que, também aprendi com Aristóteles a discordar do próprio mestre.[4]
O esforço de Herculano, durante anos escrevendo pilhas de livros, não adiantou. O frenesi em busca de salvação; em sonhar estar próximo de Jesus e dos “guias superiores” criou um caldo de gente que mistura fanatismo religioso piegas com ignorância, pouca autocrítica e fartas pinceladas de hipocrisia. Resultado: a doutrina espírita vai, cada vez mais, ladeira abaixo.
Não que eu queira tal coisa. Não! Mas o que está aí me mostra, com clareza, que o trabalho de Kardec está se corroendo de dentro para fora – houve uma inversão: no tempo de Kardec, a luta era o combate à ignorância que vinha de fora: a Igreja Católica, principalmente. Hoje, piorou, é de dentro que vem a corrosão.
Da literatura até produções cinematográficas, passando por inúmeras mensagens de qualidade duvidosa (para ser educado), o movimento espírita brasileiro vai produzindo peças cada vez menos atraentes para um público entediado com tanta informação e desinformação. Temas irrelevantes para enfrentar as reais condições de vida pipocam por redes sociais em forma de palestras, livros e filmes.
Se havia no tempo de Herculano Pires uma forte tendência ao igrejismo; hoje, além do igrejismo ter fincado mais suas raízes no solo doutrinário, soma-se um claro processo de corrosão silencioso pela insistência em pautas que não agradam o paladar de quem vive numa sociedade líquida, imediatista e ansiosa.
E o que fazer?
Não sei. Talvez começar por entender que a doutrina espírita é plástica, mutante, dinâmica em vários aspectos. Feita essa análise, partir para uma reforma no método de ensino de doutrina espírita. Esperar algumas décadas para ver se se consegue salvar alguma coisa.
O primeiro obstáculo para um projeto como esse é a arrogância de muitos companheiros que se julgam donos da verdade por terem seus diplomas na plataforma Lattes cuidadosamente lustrados todos os dias.
Jesus, a quem eles se referem o tempo todo com voz trêmula e contenção nos gestos, não gostava de tipos como estes, de jeito nenhum.
Desconfio que Jesus preferia a companhia do Diabo no deserto do que conviver com pessoas assim – mimadas e presunçosas.[5]
O que você ganha com tantas críticas ao movimento espírita?
Ganho esperança de que os espíritas, no Brasil, consigam revolucionar o método pedagógico, hoje colonizado por uma linguagem exclusivamente moralista, para uma visão crítica em todas as áreas do conhecimento, para cumprir, quem sabe, uma parte do projeto original que Kardec idealizou.
E se isto não acontecer?
Caso não haja esse ponto de inflexão nas atividades dos centros espíritas, parafraseio Madame Pompadour: depois de Kardec, o dilúvio.[6]
Você não respondeu toda à pergunta que fiz no início: o que você acha da religião espírita?
Desculpe, respondo depois. Preciso respirar ar fresco.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] José Herculano Pires
(1914-1979) foi grande divulgador da doutrina espírita, filósofo de formação,
escritor, jornalista, poeta. Escreveu mais de 80 livros e traduziu as obras de
Allan Kardec do francês para o português.
[2] Luiz Felipe de
Cerqueira e Silva Pondé é um filósofo, escritor, ensaísta. É professor de
Ciências da Religião pela PUC-SP.
[3] Viés de confirmação é o
conjunto de argumentos utilizados por alguém para confirmar suas crenças e
opiniões pessoais, mesmo que essas crenças não passem por um exame mais
crítico.
[4] Aristóteles, famoso filósofo
grego, foi um discípulo de Platão, dizia: gosto muito de Platão, mas prefiro
a verdade.
[5] Referência ao registro do evangelho de Mateus, capítulo 4, em que Jesus
é tentado pelo Diabo.
[6] Referência à frase “depois de nós, o dilúvio” é atribuída a madame
Pompadour, amante do rei Luiz XV (em francês: Après nous, le déluge). A
frase indica uma piora muito grande na situação depois da morte de alguém
importante – em nosso caso, Kardec.
Alto lá!
ResponderExcluirDe onde vem?
E com quem vem?
O que vem antes?
O que vem depois?
O que vem nesse ínterim?
Braceje
Há quem olha o panorama e o reconhece
Como o navegante de longos mares
Mirando a bússola da lucidez
E o leme do discernimento
Sua âncora é a literatura
Suas velas são as prosas nesse vasto universo
Vem de longe e com coragem
Antes tentando os ajustes
Depois acertando os manejos
Assim nesse trajeto expande expedições pioneiras e engenhosas
De cais em cais deixa a sua mensagem
Alguns pegam os remos, outros a rede ou a vara de pesca
Importa sempre mirar as estrelas no espaço
Venha o que vier, bote e colete salvavidas em mãos
Aluvião ou não, espírito crítico em qualquer ocasião!!