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A VIRADA DOUTRINÁRIA - "PERICULUM IN MORA"*

A parábola dos cegos pintura de Pieter Bruegel, o velho (concluída em 1568)

Como na parábola de Jesus, a tela mostra um cego que dirige outros cegos e todos acabam caindo numa vala profunda. (Lucas, 6, 39-45).

*periculum in mora significa o risco de irreversibilidade do dano caso a medida não seja concedida.

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ADVERTÊNCIA: caso você seja uma pessoa muito ocupada e não gosta de textos longos, sugiro não continuar a leitura, porque além de ser um pouco longo, pode ser entediante para quem não se interessa por temas aqui abordados.

Entretanto, se você decidiu enfrentar o desafio, agradeço pela sua preciosa companhia neste caminho tão árduo. Aceitarei, sem melindres e tola vaidade ferida, reparações e correções necessárias que possam contribuir para a clareza da verdade e da luta contra o fanatismo, o preconceito, os abismos sociais de toda ordem e o ódio estimulado em nome de deus.

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O que seria “virada doutrinária”?

Ao ser importada da França, a Doutrina Espírita sofreu mudanças, não na estrutura das obras de Kardec (bem que tentaram), mas na maneira como os espíritas a veem e divulgam – essa seria a virada doutrinária a que me refiro.

A doutrina espírita foi concebida por Allan Kardec como uma mistura de religiosidade cristã, pensamento filosófico acentuadamente positivista e uma postura cientificista -  pujante em meados do século XIX. A visão desse grande mestre francês era uma visão eurocêntrica e não podia ser diferente, embora sua educação tenha sido forjada por Pestalozzi, o que nos leva a pensar que certas afirmações contidas em seus livros podem e devem receber críticas. De 1857 até hoje, várias áreas das atividades humanas sofreram grandes mudanças. Algumas teses tornaram-se peças de museu. 

Mutatis mutandis (mudando o que tem que ser mudado), o estudioso do Espiritismo deve separar e garimpar aquilo que pode ser um conceito atemporal dos demais. Essa é a beleza da doutrina espírita, dotada de grande poder de adaptação às mudanças culturais, científicas, sociais, geopolíticas que, inexoravelmente, afetam a humanidade com o tempo. A meu ver, essa era a maneira como Kardec a entendia.

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O começo do fim: Periculum in mora*

Considerando, de um lado, a figura jurídica do fumus boni iuris (demonstração da confiabilidade na presunção de existência do direito alegado)que aqui assume a ideia de preservação do que Kardec entendia por “doutrina espírita”; e de outro, a figura jurídica periculum in mora – que aqui assume a ideia de uma virada na chave doutrinária que a reduz a uma doutrina de fé religiosa que, atualmente, flerta com o sectarismo[1].

No Brasil essa “virada de chave doutrinária” é evidente, não necessariamente para pior, mas como causa redutora daquilo que Kardec propôs em sua obra.

Com essa redução causada pelo crescente sectarismo religioso, os campos filosófico e científico pouco avançaram dentro do ambiente espírita em geral, onde se evita debates em torno de temas espinhosos no campo da filosofia, do direito, da sociologia. Em minhas andanças nunca encontrei um centro que tivesse um departamento dedicado à Filosofia ou à Pesquisa do fenômeno espírita, ou qualquer outra área de interesse público real.

Com o tempo, a mentalidade religiosa cresceu o bastante para que essas disciplinas fossem colocadas de lado nas escolas espíritas – como José Herculano Pires[2]chamava rispidamente de “mentalidade igrejeira”. Embora haja sinais de mudança no horizonte, são iniciativas muito tímidas diante do desafio posto com o crescente desencanto que caracteriza o nosso tempo.

Essa hegemonia de caráter moral-religiosa apresenta os seguintes sinais:

Primeiro: gravuras de Jesus e Maria de Nazaré e santos, médiuns, espíritos protetores enchem paredes dos centros espíritas.

Kardec, salvo engano, jamais colocou, em suas obras, a figura de Jesus, de Maria de Nazaré ou personagens históricos da cristandade, mas há publicações que chegam a estampar Kardec e Jesus com sorrisos de dar inveja a qualquer clínica de implantes dentários. Carência afetiva ou ignorância?

Segundo: (essa me parece a mais perniciosa de todas) a aproximação político-ideológica de uma parte não desprezível de espíritas ditos kardecistas, com  o movimento extremista, no Brasil.

Trago um exemplo recente: no ato de 25 de fevereiro de 2024, na avenida Paulista, na cidade de São Paulo, promovido e organizado por um pastor neopentecostal juntamente com políticos ligados a essa corrente extremista. Naquele evento, segundo dados da Universidade de São Paulo, reuniu-se o impressionante número de 185.000 pessoas.

A certa altura, informa a Revista Veja, Michele Bolsonaro, esposa do ex-presidente da República, toma a palavra e diz: nós fomos negligentes a ponto de falarmos que não poderia misturar política com religião e o mal tomou, o mal ocupou o espaço. Chegou agora o momento da libertação.

O que seria esse “mal”? Quem seriam os representantes do maligno?

Evidentemente, para aqueles que utilizam a retórica do ódio misturada a frases retiradas da Bíblia, são os que não pensam como eles e, por serem representantes do Diabo, esses “diferentes” devem ser presos, punidos e, se possível, eliminados.

Num claro distanciamento do que disse o Cristo: "Vinde a mim, TODOS vós que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso".[3]Com a baba do ódio escorrendo pelos cantos da boca, muito mais venenosa que a saliva dos dragões de Komodo[4], vociferam contra os imaginários comunistas e pessoas ligadas a outras matrizes religiosas.

Até onde sabemos, nosso país está sob regime democrático, e a base desse regime é a manutenção de um estado laico onde as leis garantem que cristãos, muçulmanos, judeus, budistas, correntes religiosas de origem africana, ateus, agnósticos, satanistas, partidos políticos que vão do espectro da direita até o da esquerda; corintianos e palmeirenses convivam e se respeitem mutuamente.[5]

E o que tem a ver a tal da “virada de chave doutrinária” do movimento espírita com esse evento na Avenida Paulista?

Tem a ver com a aproximação de espíritas - que se declaram kardecistas – com as pautas desse movimento teológico-político extremista em nosso país. Pego o exemplo do citado ato na avenida Paulista:

A pesquisa apontou que, das 185.000 pessoas que lá estavam[6], 43% eram católicas; 29% evangélicas; 10% nenhuma e 11% espíritas/kardecistas.

À primeira vista, parecem poucos esses 11% de espíritas em relação aos 89% restantes, mas uma análise mais minuciosa mostra que, proporcionalmente, o número de espíritas presentes foi muito maior do que qualquer outro grupo de manifestantes: 3,88 vezes maior do que católicos e 3,56 vezes do de evangélicos.

Não quero aborrecer que me lê neste momento, mas se tiver vontade de conferir, é só descer até as notas e verificar a tabela que montei.[7]

Sabe-se que o movimento espírita brasileiro sempre enquadrou-se num perfil conservador. Antes, esse conservadorismo era discreto; hoje, com o número crescente de extremistas de direita, esses “patriotas” espíritas saíram do armário.

É espantoso constatar como essa gente que está, há muitos anos, atuando no movimento espírita, que frequenta e trabalha em centros de grande expressão, alinha-se a pautas que nem a mais bela tese de antropologia cultural consegue ver com isenção.[8]

Uma resposta possível seria a condição humana: dissonância cognitiva; repertório de reflexão filosófica deficiente que lhes proporciona uma visão rasa das relações humanas. Infere-se que esses espíritas não estudaram adequadamente a Doutrina Espírita e sua cultura não passa de impressões retiradas de livros de qualidade duvidosa.

Por outro lado, sabemos que a manutenção do modelo democrático, republicano, depende visceralmente de uma visão crítica do mundo, fomentada pela reflexão filosófica[9]. Contudo, nos últimos anos, esse modelo tem sido ameaçado em todo o mundo.

Com essa prática pedagógica pouco emancipatória nas casas espíritas, o quadro se torna mais complexo e o risco daquela “virada doutrinária” alcança um patamar sem retorno.

Para mim, essa adesão dos espíritas, confirmada pela sua expressiva presença naquele ato, significa o começo do fim. Por quê?  

Porque, se as gerações futuras dependerem de gente que se alinha a uma política de destruição e terra arrasada, a doutrina espírita de Allan Kardec estará morta e enterrada.

E caso este projeto teocrático dos extremistas tomar o poder - isto não está tão longe no horizonte – eles sabem lidar muito bem com mídias, sobretudo nas redes sociais[10], essa gente colocará em prática o que hoje é apenas discurso: a eliminação do “mal” (leia-se os que não pensam como eles) – como sugerem seus líderes, que além dos ataques já perpetrados aos centros de umbanda e candomblé, os espíritas kardecistas que os apoiam serão os próximos da fila a serem eliminados da paisagem, juntamente com os demais, sem a menor cerimônia como fez o bispo católico Arnaud Amalric com os cátaros, em 1209.[11]

O extremismo não tem vocação para afagar quem se opõe à sua agenda. É bom que espíritas desse grupo de “patriotas” se preparem para o que vem por aí.

Como diriam os puxadores de escolas de samba: É periculum in mora chegando aí, minha gente!

Difícil? Quem disse que seria fácil?

Nota de agradecimento:

Agradeço à Plínia Campos Ribeiro, por ler e corrigir o rascunho deste texto.


[1] Sectarismo: intolerância, rigidez, intransigência.

[2] José Herculano Pires (25/09/1914-09/03/1979): escritor, filósofo, orador espírita diagnosticou a crescente e insidiosa mentalidade igrejeira dentro dos centros espíritas. Como não há nada que esteja ruim que não possa piorar, hoje, essa mentalidade é predominante.

[3] Bíblia King James, Mateus, 11-28.

Encontrei no prefácio escrito por Alexandre Coimbra Amaral, do livro Os desafios da Terapia, autoria de Irvin D. Yalom, o seguinte parágrafo onde Alexandre aponta esse espírito separatista:

Quanto mais o curso de graduação (em Psicologia) vai se acentuando em seus epílogos, mais os estudantes vão se transformando em forasteiros uns dos outros. Yalom me ajudou definitivamente a refrear essa tendência separatista entre corações e mentes que outrora tinham se encontrado para fazer da comunalidade uma parte da sua jornada existencial.

[4] Lagartos que vivem na região da Indonésia. São carnívoros. Suas presas morrem pelo caldo bacteriano altamente tóxico presente em sua saliva.

[5] Não sejamos ingênuos a ponto de acreditar que uma lei possa reprimir as pulsões da alma humana sem estragos consequentes. Temos de trabalhar bastante para haver um ambiente de convivência possível, caso contrário viveremos em plena barbárie.

[7] Se compararmos o número de católicos e evangélicos com o número de espíritas ditos kardecistas, naquele ato veremos que o número relativo de espíritas lá presentes, era muito maior do que as outras denominações religiosas[7]. Veja tabela abaixo:

 

POPULAÇÃO BRASIL (2023)

203 MILHÕES DE HABITANTES

203.000.000

Distribuição por religião (2020)

Católica

Evangélica

Sem Religião

Espírita

Afro-Bras

Outra

Ateu

Judaica

50%

31%

10%

3%

2%

2%

1%

0,03%

Número de habitantes

/Religião

101.500.000

62.930.000

20.300.000

6.090.000

4.060.000

4.060.000

2.030.000

60.900

 

 

 

 

 

 

 

 

% de pessoas no Ato

43%

29%

10%

10%

7%

 

 

 

 

 

 

 

 

Nº de pessoas no Ato

 

 

 

 

 

 

 

 

185.000

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Total de pessoas no Ato/Religião

79.550

53.650

18.500

18.500

12.950

 

 

 

 

 

 

 

 

Proporção População/

Religião

0,0008

0,0009

0,0009

0,0030

0,0013

 

 

 

 

 

 

 

 

Quantas vezes maior

3,88

3,56

3,33

 

2,40

Em resumo: a proporção de espíritas presentes era 3,88 vezes maior do que católicos; 3,56 vezes maior que evangélicos!

[8] Relativismo cultural: na Antropologia se dá quando, ao se investigar determinado grupo humano, não se faz julgamento algum, ou seja, a visão do investigador deve ser neutra diante do conjunto de comportamentos, crenças e hábitos que a princípio lhe parecem estranhos, que resultam em choque cultural.

[10] Que fique bem entendido, não estou colocando no mesmo balaio TODOS os evangélicos, mas uma parcela significativa deles que se alinha ao reacionarismo conservador e fundamentalista. Há trabalhos e nomes de pastores evangélicos que não aceitam essa corrente radical e a criticam com veemência, assim como há trabalhos acadêmicos importantes demonstrando o serviço de atendimento sócio espiritual prestado por igrejas reformadas em todo o território brasileiro.

De novo, repito e trepito: “conservador” não significa necessariamente “reacionário”. Estes últimos são radicais e, não raro, sofrem de dissonância cognitiva e repertório limitado.

Ler Juliano Spyer, Povo de Deus – Quem são os evangélicos e por que eles importam.

[11] A Igreja Católica, chefiada pelo papa Inocêncio III determinou que o citado bispo desse a ordem de eliminação total dos cátaros – grupo considerado herege pela Igreja, constituído de milhares de pessoas. O comandante dos cruzados, encarregado daquela horrível tarefa, dirigiu-se ao bispo dizendo-lhe que no meio daquela gente havia alguns que eram cristãos que guardavam as orientações da Igreja. Resposta do bispo ao cruzado: “matem todos, Deus saberá quem são os seus.”

Resultado do massacre foi de mais de 20 mil pessoas mortas entre elas jovens, crianças, velhos, mulheres e homens. Não sobrou ninguém.

Sugestão de leitura (para espíritas): Os Cátaros a Heresia Católica, Hermínio Correa de Miranda, 2002.


Comentários

  1. Peço vênia para valer-me da criação do talentoso cantor e compositor Ney:

    O insensato cruzou a calçada
    Passou por debaixo da balaustrada
    E lá no extremo sul
    Na noite após a festa
    A rua culminou
    A mudança, a moda, o arroz-de-festa...

    Gira, gira, gira!
    Gira, gira, gira os que dormem gira, gira!
    Gira, gira, gira Bom Homem gira, gira!
    Gira, gira, gira os que dormem gira, gira!

    Perfilam rabujas e gralhas-do-campo
    Entre os Ubiracis e as Mafaldas
    E lá no extremo sul
    Na noite após a festa
    A rua culminou
    A mudança, a moda, o arroz-de-festa...

    Gira, gira, gira!
    Gira, gira, gira os que dormem gira, gira!
    Gira, gira, gira Bom Homem gira, gira!
    Gira, gira, gira os que dormem gira, gira!

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