Figura do deus Janus
(ou Jano)*
*Na mitologia
romana, Janus é a divindade bifronte que mantém uma de suas faces
sempre voltada para frente, o porvir, e a outra, para trás, em apreciação ao
que já se passou.
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²³ Portanto, se trouxeres
a tua oferta ao altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa
contra ti,
²⁴ Deixa ali diante do
altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem
e apresenta a tua oferta.
²⁵ Concilia-te depressa
com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para não acontecer
²⁵ que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão.
Mateus 5:23-25
(tome como “adversário” aquela pessoa que distanciou de você por conta de desavenças, mal-entendidos)
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Tá, mas se o meu “adversário” não estiver mais aqui na Terra, como faço?
Encontrei uma resposta ao ler Bertrand Russell[1]:
Nossos pais amam-nos porque somos seus filhos, é um fato inalterável. Nos momentos de sucesso, isso pode parecer irrelevante, mas nas ocasiões de fracasso, oferecem um consolo e uma segurança que não se encontram em qualquer outro lugar.
(Certamente, Russel se referia a pais suficientemente bons – o que na média o são. Muitas vezes, não conseguem sê-lo por conta das circunstâncias e de falta de formação humanista, o que resulta em repetição de padrões negativos da tradição familiar).
Ao ter contato com essa expressão de Russell, tive uma espécie de insight e duas lembranças surgiram nas brumas da memória, ambas sobre o meu pai Genaro.
Nunca tive muito contato com o meu pai. Foi uma relação distante.
Ele era de índole melancólica. Nos últimos anos de sua vida, passou sentado em
sua cama pensando, ouvindo um rádio de cabeceira e sofrendo de dores
inconfessáveis.
Hoje, penso que ele sofria um certo grau de depressão, além da doença que o abatia, e dadas as condições em que viveu e sua experiência com mãe e irmãos. Não era um modelo de pai e marido, mas duas experiências com ele marcaram minha alma.
A primeira foi uma briga que tive com ele, quando tinha 14 anos. Com o fruto de meu trabalho, eu comprara um sonhado radinho de válvulas. Guardava aquilo como se fosse uma relíquia. Não deixava ninguém pôr as mãos.
Belo dia, chego do trabalho e vejo meu pai, como de costume, sentado em sua cama ouvindo o tal rádio. Fiquei muito alterado e o ofendi, tirando-lhe o aparelho e guardando no meu armário.
A outra lembrança, puxada pela anterior, veio da experiência que passei com a compra de uma bicicleta. Sonhava em ter uma bicicleta para poder passear com os meus amigos da época (já aos 17 anos) e a oportunidade apareceu quando alguém foi ao escritório onde eu trabalhava e me ofereceu uma bicicleta. Comprei-a e desfrutei dela por um mês até a polícia surgir no meu trabalho, informando que aquela bicicleta tinha sido fruto de roubo e, ato contínuo, conduzindo-me até minha casa para a devolução do objeto roubado.
Os investigadores tiveram a excepcional compreensão de estacionarem a viatura em local um pouco distante de minha casa e pediram para que eu fosse buscar o fruto do roubo. Vi então meu sonho derreter quando puseram a bicicleta na viatura e sumiram pelas ruas do bairro onde morava.
Talvez, pelas leituras que fiz sobre Análise Transacional de Eric
Berne[2]
trouxe-me à lembrança desse triste episódio em que sobrou egoísmo infantil de
minha parte e pouca ou nenhuma compaixão por aquele homem triste.
No choque daquela lembrança, imaginei, sob a ótica da análise de Berne, como seria interessante confrontar aquele pré-adolescente com minha experiência de hoje.
Voltemos à minha adolescência...
Tempos depois, recebi uma intimação do delegado de polícia de Mogi das Cruzes, solicitando a minha presença e do responsável por mim – no caso, o meu pai, que já andava cheio de dores.
Lá fomos nós, de ônibus, para a delegacia. Olhava aquele homem ao meu lado num misto de espanto e angústia por vê-lo ali, encolhido, pela dor que sentia. Seu silêncio era como adaga espetando minha alma por me sentir responsável por aquela situação.
Lembro-me de que, em determinado momento, ele teve forças para dizer que eu ficasse tranquilo porque ele se responsabilizaria por qualquer pena que eventualmente caísse sobre mim. Foi um choque assistir ao ritual feito pelos agentes da delegacia colhendo-lhe as digitais.
Se a técnica de Eric Berne pudesse trazer algum alívio para minha alma por aquelas memórias, então eu assumiria o papel de adulto que encararia aquele jovem e lhe diria: não se aflija, você não tinha a aguda noção daquele grave momento existencial. Além disso, olharia para o jovem e lhe pediria que se desculpasse com o homem triste e dolorido que passara pela minha vida e me ensinara como ser solidário, dando-me a segurança que não encontraria em qualquer outro lugar, como dissera Russell.
Nesse processo, notei que, na advertência feita por Jesus – conhecedor da alma humana, haverá, sempre, a necessidade urgente de reconciliação com o passado para tranquilizar o presente e ter esperança no futuro.
Ao fazer esse exercício mental, percebi que então poderia fazer minha oferta no altar do templo de Deus e me sentir como o filho pródigo que avistou o seu pai, na curva da estrada, esperando-o para abraçá-lo novamente.
Obrigado, pai. Gratidão sempre.
E você, tem alguém com quem gostaria de se reconciliar? Se tiver, não deixe para depois.
Sei, muitas vezes esse exercício é difícil, mas quem disse que seria fácil?
[1] Bertrand Arthur William Russell, 3.º Conde Russell foi
um dos mais influentes matemáticos, filósofos, ensaístas, historiadores e
lógicos que viveram no século XX.
[2] A Análise Transacional é um método psicológico criado
em 1956 pelo psiquiatra Eric Berne. Informalmente conhecida como AT, estuda e
analisa as trocas de estímulos e respostas, ou transações entre
indivíduos. Dentro da teoria, Eric Berne classificou a
personalidade humana em três categorias chamadas de “Estados de Ego”, sendo
elas: pai, Adulto e Criança. A relação entre esses estados estabelece a
estrutura da Análise Transacional.
Bonita mensagem, a qual nos faz refletir sobre acontecimentos do passado e nossos familiares.
ResponderExcluirAdoro essas histórias: pela sensibilidade e pelo amor que é vivido (vívido) e revivido e sentido e compartilhado numa espécie de terapia biográfica. Um abraço apertado!
ResponderExcluirObrigada por despertar meu espírito!
ResponderExcluirPai, mãe, ou quem nos criou, deixou marcas indeléveis em nossa personalidade.
ResponderExcluirNão há curso de formação de pai-mãe com duração "suficiente"; comumente os que existem são de algumas horas ou, no máximo, uma vez ao mês ao longo de um ano.
Fora isso, é no contato diário e direto com os familiares que aprendemos a 'atuar em nossos papéis'.
Não tem manual de instrução. Experenciamos acertos e desacertos, ganhos e perdas, conquistas e fracassos. Assim é a vida.
Herdamos genes e manias, características físicas e valores morais. Aceitamos a convivência conjunta quando elaborarmos antes o planejamento reencarnatório. Concordamos com as cláusulas do contrato existencial.
Assim vamos nos aperfeiçoando, mutuamente.
Benditos são os nossos genitores ou aqueles que nos fornaram o caráter.
Quando os honramos nós revelamos a educação que recebemos e incorporamos.
Exemplifiquemos o melhor deles em nós.