Escultura localizada no templo Dhyanalinga Temple –
Coimbatore – Índia
Representando as
três naturezas
Advertência: Minha intenção é fazer
contrapontos ao que se oferece nas casas espíritas em geral e não atacar
pessoas, mas ideias que circulam nesse meio. Vale frisar que o faço do lado de
dentro desse movimento tão importante para mim.
Críticas vindas de fora podem trazer uma eventual contribuição ao
debate, mas não são dialógicas; enquanto as que vêm do lado de dentro podem provocar
conversas muito mais produtivas, porque sua natureza é dialética.
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Estudiosos do Espiritismo costumam dizer que na Doutrina Espírita há três aspectos fundamentais: Religião, Ciência e Filosofia. Isso não é pouco; aliás, é tudo! Por esta razão costumo dizer que o Espiritismo é a ciência de tudo.
O problema não está em afirmar tais aspectos contidos nos cânones doutrinários. O problema encontra-se na forma como os espíritas entendem essa perspectiva totalizante.
Em minhas andanças por inúmeras casas espíritas, ouvi muito sobre o tal “tríplice aspecto” e, na minha ignorância, sofria um certo mal-estar difuso com afirmações genéricas cujo resultado causava mais confusão do que esclarecimento na minha cabeça.
ASPECTO RELIGIOSO
Em linhas gerais, o que seria o aspecto religioso da doutrina
espírita? Seria a crença em um princípio criador de toda a realidade – Deus;
tendo Jesus como representante maior dessa crença e fonte de inspiração e de
norteamento na vida prática de seus seguidores fiéis.
Acho que duas questões levantadas por Kardec servem como baliza do
meu entendimento: as Questões 1 e 625 constantes em O Livro dos Espíritos.
Há, portanto, uma teologia espírita que deve ser estudada, meditada e praticada na sua máxima expressão para evitar um olhar vaidoso sobre outras manifestações religiosas. Fé não se mede pelos seus dogmas, mas pelas suas práticas.
ASPECTO CIENTÍFICO
Seria a investigação dos inúmeros e variados fenômenos espíritas que acontecem espontaneamente ou não, em nosso meio.
Não podemos esquecer que a Doutrina Espírita foi fundada num
momento histórico em que a Ciência ocupava o pedestal da salvação da
humanidade.
Com o iluminismo surgiu a ideia de a Ciência ocupar o lugar de
Deus como fonte de felicidade e bem-estar, tornando-se uma crença generalizada
e aceita por grandes pensadores do século XIX. A filosofia positivista[1]
ocupou um espaço enorme nos corações e mentes dos idealistas cientificistas
daquele momento.
Kardec, como homem de seu tempo, abraçou essa ideia a ponto de
afirmar que, caso houvesse contradições nas teses apresentadas entre a Doutrina
Espírita e a Ciência, que o espírita desse preferência à posição científica.
Não posso deixar de reconhecer o grande trabalho desenvolvido por Kardec nessa área, principalmente em O Livro dos Médiuns – livro cujo conteúdo Dora Incontri considera como “o que menos envelheceu”.
Sabemos hoje que, se por um lado os avanços científicos e
tecnológicos trouxeram conforto à humanidade, sobretudo na Medicina; por outro,
carregaram grandes dilemas cujos efeitos provocaram e provocam inúmeros
distúrbios psíquicos. A possibilidade de uma guerra nuclear ou biológica entre
países com grande poder tecnológico e bélico é um exemplo clássico que assombra a todos nós[2].
Hoje, grandes nomes da Ciência, abandonaram a visão positivista da
realidade e encaram a Ciência não como a verdade, mas como mais uma
ferramenta em busca da verdade e, que a razão, não consegue esgotar todos os
enigmas que a Natureza oferece.
Contudo, ainda há líderes espíritas de grande projeção que proferem palestras alegando que há provas científicas da existência de Deus – algo pedante para não dizer falso do ponto de vista epistemológico[3].
Até aqui, tudo muito fácil de diagnosticar...
ASPECTO FILOSÓFICO
O aspecto filosófico da Doutrina Espírita, a meu ver, inegável,
sofre com a pedagogia aplicada nas casas espíritas para discutir esse campo.
E, concluo com o seguinte: ao longo do tempo, evidências se multiplicaram em demonstrar a hipertrofia do aspecto religioso e a atrofia dos aspectos científico e filosófico dentro do movimento espírita[4]. Todos nós sabemos o que acontece quando, num banco de três pernas, se retira duas delas: não se sustenta em pé.
Peço sua paciência e compreensão, para fazer um corte que serve como ilustração do que tento dizer nesta postagem. Marilena Chauí[5] numa obra, com proposta didática, dedica aos interessados em Filosofia, um livro chamado “Convite à Filosofia” no qual, no início, diz o seguinte:
E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as
mesmas ideias, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores,
preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor
artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade?
Alguém que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida
cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os
sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência.
Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo,
desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que
sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos? Esse alguém estaria
começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica.
Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é Filosofia?”
poderia ser: A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias,
os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência
cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido.
Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E
ele respondeu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores
considerações”. A atitude crítica
A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto
é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e
às ideias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao
estabelecido.
A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é,
uma interrogação sobre o que são as coisas, as ideias, os fatos, as situações,
os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o
porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e
não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações
fundamentais da atitude filosófica.
A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico.
A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do
senso comum e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos
saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a
primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o
discípulo de Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a
admiração; já o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a
Filosofia começa com o espanto.
Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos (destaques meus).
Nesta obra, a introdução feita por esta grande filósofa brasileira mostra, por si só, a grande perda de conteúdo a que o movimento espírita brasileiro se sujeita em não prestar a atenção devida a essa importante área com o costumeiro argumento que a assistência social e espiritual tem mais pressa do que o pensamento filosófico.
RESUMO DA ÓPERA
Na obra “O Espírito das Leis” de Montesquieu[6] , este autor defende a separação dos poderes numa república[7]. Especialistas neste tema afirmam que a Democracia se sustenta pela paridade dos poderes constituídos, cada um atuando de forma independente, em áreas específicas, em harmonia, mas cada um servindo de peso e contrapeso para não haver excessos de um poder sobre os demais.
Quando temos três aspectos, acima citados, que compõem uma doutrina (no caso a espírita), caso haja a hipervalorização de um deles (no caso o religioso) em prejuízo dos demais, haverá um desequilíbrio que resultará numa doutrina teológica dogmática na qual a Filosofia será serva da Teologia como o foi na Idade Média. Dá para calcular o prejuízo?
E, na linha do grande Aristóteles, o nosso espanto (filosófico) cresce nesse ciclo vicioso: de um lado, com a miséria material cada vez mais aguda provocada, em boa parte, pela miséria intelectual vigente; de outro, uma classe elitizada que busca salvação mais pela caridade do que pela justiça.
Seria essa a revolução que Kardec esperava ao dedicar muitos anos de sua vida na construção, no estudo e na reflexão da Doutrina Espírita?
Difícil, não é? Quem disse que seria fácil?
[1] Positivismo: Corrente
filosófica desenvolvida por Auguste Comte, no século XIX, defendia que apenas
os conhecimentos científicos como verdadeiros. Para essa a linha de pensamento,
as crenças religiosas eram inválidas.
[2] Para aprofundar nesse tema do descompasso entre
tecnologia e qualidade da vida humana, sugiro a leitura do filósofo de origem
coreana radicado na Alemanha Byun-Chul Han.
[3] Ponto de vista
epistemológico: seria o exercício filosófico de saber dos limites do
nosso conhecimento empírico, analítico e normativo.
[4] Atrofia: ausência
de desenvolvimento. Hipertrofia: aumento exagerado. Já discuti sobre
essa visão que tenho do movimento espírita em geral.
[5] Marilena de Souza Chauí é uma escritora e filósofa brasileira, especialista
na obra de Baruch Espinoza e professora emérita de História da Filosofia
Moderna na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo
[6] Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de
Montesquieu, conhecido como
Montesquieu, foi um político, filósofo e escritor francês. Ficou famoso pela
sua teoria da separação dos poderes, atualmente consagrada em muitas das
modernas constituições internacionais, inclusive a Constituição Brasileira.
[7] https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/43/169/ril_v43_n169_p21.pdf
Seu Humberto sempre a furar a bolha dogmática. Obrigada por compartilhar a luz do conhecimento. Jay Guru!
ResponderExcluirOs três aspectos do MEB (Movimento Espírita Brasileiro):
ResponderExcluirPautar-se nas obras e autores complentares em vez de estudar as basilares, de Kardec.
Ler, conhecer, somente publicações espíritas desconhecendo outras divulgações históricas, científicas, filosóficas, e até religiosas.
Basear-se nos 'inflenciadores' midiáticos - médiuns, palestrantes - ao invés de buscar dialogar com pares, mais próximos, sobre dúvidas e mais dúvidas.
O espiritismo oferece um mapa, uma bússola e um guia. Quem deseja examinar, investigar e explorar o terreno des-conhecido há de se valer, e precaver, dos três recursos.
O guia é o mais conhecido, pois oferece certa praticidade. Seus seguidores classificam as suas informações como verdadeiras, e inquestionáveis.
O mapa é a mais confiável amostra de informação objetiva. É o segundo mais procurado, porque demanda um domínio da linguagem cartográfica. E nem todos têm prática ou familiaridade com essa ciência.
A bússola é o mais preciso instrumento de orientação baseado no campo magnético terrestre. É comum a utilização combinada dela e do mapa para o deslocamento ser mais preciso. Em outras palavras, o próprio indivíduo pondera, por si e em si, a vistoria do espaço investigado.
Não são fortuitos, aleatórios esses três aspectos do espiritismo. Pelo contrário, se complementam.
Urge ensinar aos navegantes as rotas marítimas do Oceano. Singremos no novo ano.