
É contrário à Lei da Natureza o isolamento absoluto?
Sem dúvida, pois que por instinto os homens buscam a sociedade e todos devem concorrer para o progresso, auxiliando-se mutuamente.
Allan Kardec. O Livro dos Espíritos, questão 767.
Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? ninguém é bom, senão um que é Deus.
Jesus. Evangelho de Marcos, 10:18
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Num artigo publicado pela Folha de São Paulo[1], o articulista João Batista Natali comenta sobre o documentário da Netflix “Homens comuns: assassinos do Holocausto”.
Entre outras coisas, escreve: Entre amigos, um nazista podia
até ser afável, acariciando gatinhos e apreciando a música de Mozart. Mas ao
cumprir suas tarefas, podia com a mesma naturalidade assassinar brutalmente
dissidentes e judeus.
E conclui: historicamente, não existe nazista bom.
Lembrei-me de duas experiências famosas, e não menos controversas, neste campo cinzento da alma humana: o experimento feito por Stanley Milgram[2] e o outro feito por Philip Zimbardo[3].
O primeiro queria saber até onde pessoas comuns obedecem a uma ordem – mesmo que seja absurda, de alguém investido de autoridade; o segundo, investigou até onde chegava a violência de pessoas, em grupos, que detêm o poder de controlar outro grupo, no caso específico deste experimento de encarceramento.
Ambos os experimentos tiveram resultados, no mínimo, assustadores. Vale lembrar que ambos foram feitos há mais de cinco décadas.
Como eu disse, essas experiências foram posteriormente questionadas, pelos seus pares do campo psi. Isso não vem ao caso aqui.
E se pegarmos esse período da História e esticarmos para um tempo maior, vamos perceber que pouco mudou. Aliás, mudaram as técnicas de extermínio do outro; hoje mais sofisticadas e precisas. Somos seres incontrolavelmente agressivos que matamos em nome de um conceito, de uma ideia (a agressividade de um tigre não chega aos pés da agressividade humana, porque o tigre não ataca e mata em nome de uma ideologia).
De lá para cá mudou alguma coisa? Não é difícil chegar a uma resposta negativa. Basta olhar ao redor.
É certo que, nos dias de hoje, temos a carta dos direitos humanos; temos leis contra o racismo, à homofobia; à misoginia, blá-blá-blá. Essas normas conseguem conter o ímpeto agressivo de parte da humanidade, mas não derrota o preconceito enraizado no coração humano plantado, paradoxalmente, pela via da educação. Vá perguntar para um talibã[4] o que ele acha da misoginia.[5]
É o medo à retaliação, ao encarceramento, à punição vinda do Estado é que detém esse afeto humano e não a consciência de que é bom agir de um jeito ou de outro.
Traçando um paralelo com o experimento de Philip Zimbardo, meu olhar se fixa nas condições prisionais do Brasil – essa cronicamente inviável pátria do evangelho[6]. Estamos muito longe de uma sociedade tolerante e civilizada.
E é bom que saibamos disso, porque só assim para desenvolvermos uma natural aversão à intolerância[7]. A começar por nós mesmos.
Um interessante caminho de autoconhecimento é não se achar “bom”; não como a tolice de considerar-se humilde, ou de autodepreciação, mas como maneira de perceber as sombras que levamos no coração e os equívocos que carregamos na mente. Talvez seja esta a advertência feita pelo Cristo ao rapaz que o procurou chamando-lhe de “bom”.
Lembro-me de um relato feito pelo médico e escritor britânico Theodor Dalrymple. Conta ele que pulou de alegria ao saber que o ditador romeno Nicolae Ceausescu e sua esposa tinham sido sumariamente fuzilados. Sua irmã que assistia à cena chamou-lhe a atenção: “como assim, você acha a conduta dos que os fuzilaram algo civilizado?”. Com a advertência da irmã, Dalrymple sentiu uma fisgada de vergonha. Inevitável não pensar no conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt[8].
Sem essa autoanálise, continuaremos chorando de emoção ouvindo Mozart, sensibilizados com os gatinhos, fazendo preces emocionadas e perseguindo e matando gente que não torce para o nosso time, não comunga de nossas crenças.
Voltando à questão lançada por Kardec no Livro dos Espíritos: as inteligências incorpóreas respondem a Kardec que o progresso efetivo se fará quando todos concorrerem para a melhoria geral, auxiliando-se mutuamente.
Há um gap, um descompasso entre o que se quer e o que se
faz.[9]
Talvez, não sei, seja por isso que os espíritos, em sua resposta, tenham
utilizado o pronome indefinido “todos”.
Porque se não formos mais ou menos “todos”, o progresso se dará de
forma desigual provocando guerras, destruição, genocídios, fome, desterro,
conflitos intermináveis em seu nome.
Isso não é novidade. Para Nietzsche, o ser humano é um animal doente: dividido, insaciável, inquieto[10].
Quero que, você que me lê, perceba o tamanho da dificuldade, ou se quiser ser otimista, o tamanho da distância que estamos dessa proposição diante do que disse o Cristo àquele rapaz perplexo: não somos bons.
Nesse exercício constante entenderemos que leis, normas, castigos, punições são perfumaria diante de uma humanidade doente e de coração empedrado.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1]
Filme na Netflix explora como nazismo converteu em monstros homens comuns.
João Batista Natali. Folha de São Paulo, 05/10/2023.
[2] Stanley Milgram
(1933-1984) foi um psicólogo americano que conduziu uma experiência de
obediência à autoridade.
[3] Philip George Zimbardo (1933- ) é psicólogo e
professor emérito da Universidade de Stanford.
Conduziu o experimento
conhecido como Experimento de Aprisionamento de Stanford. Lançou o livro “O
Efeito Lúcifer” onde narra que pessoas boas podem se tornar diabólicas.
[4] Talibã: movimento nacionalista e
fundamentalista islâmico. A palavra “talibã” significa “aluno” ou “estudante”.
[5] Misoginia: ódio ou aversão às mulheres.
[6] Referência à obra com alta cota de ufanismo,
psicografada por Francisco Cândido Xavier “Brasil, coração do mundo, pátria
do evangelho”.
[7] Faço referência ao paradoxo da tolerância de Karl
Popper: a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. A
Sociedade aberta e seus inimigos.
[8] Arendt vai desenvolver esse conceito em seu livro Eichmann
em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal.
[9] Retomo o já citados versos de Rui Guerra: Meu
coração tem um sereno jeito/E as minhas o golpe duro e presto/De tal maneira que, depois de feito/Desencontrado,
eu mesmo me contesto. /Se trago as mãos distantes do meu peito /É que há
distância entre intenção e gesto.
[10] Ver Genealogia da Moral, F. Nietzsche.
Penso que o texto nos remete à guerra Hamas/Israel, em que os protagonistas, de lado a lado, se enquadram na visão um tanto quanto erudita (que tornam sua leitura um pouco pesada) do sob vários aspectos. Pode a ONU impor sua autoridade sobre agressores e agredidos? Por isso, admiro mais o tigre do que alguns seres "humanos".
ResponderExcluirProgresso = passo a passo, em frente, lentamente e inexorável.
ResponderExcluirBarbárie = falta de humanidade
Paradoxo. Avançamos ou não!?!
Aviltantes a incivilidade, a bestialidade...
Conviver com as cenas lancinantes dos que sofrem fere a alma, numa sensação de onipotência por estar fora da minha esfera de atuação.
Se pensarmos num transporte, em movimento, com seres literários, dignitários, estagiários, retardatários, proprietários, proletários, entre outros voluntários e solitários, que embarcam e desembarcam encontraremos um senso para tal discrepância.
Ilustra a realidade planetária, apesar das governanças, para dizer no mínimo, autoritárias.
Por mais vozes clamando, e agindo, em prol de uma majoritária humanidade igualitária.