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TOLERÂNCIA ZERO

Nota: caso queira, o texto abaixo está disponibilizado em áudio no Youtube. Link abaixo:

https://youtu.be/hbSeyY-DxXA

Se eu sou eu porque você é você, e se você é você porque eu sou eu, então eu não sou eu e você não é você e a gente não tem o que falar. Mas, se eu sou eu porque eu sou eu, e você é você porque você é você, então eu sou eu e você é você e podemos conversar.

(Rebe de Kotzk)

Citado por rabino Nilton Bonder – Princípio da Tolerância

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A pior intolerância é a divina.

(Autor desconhecido)

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Neste momento em que nos encontramos – todos nós, ameaçados pelo ressurgimento de ideologias extremistas que utilizam as redes sociais, e de grande polarização, é preciso que discutamos a questão da tolerância para não cairmos naquilo que Millôr Fernandes dizia:

Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim. 

É curioso notar que, embora a intolerância faça mal para o intolerado, ela prejudica muito mais o intolerante. Veja o caso banal da intolerância à lactose. (risos).

Como escreve Eugenio Bucci em seu ensaio “Intolerância, ou tragédia do não-diálogo”, a tolerância seria uma virtude menor, porque depende do outro para ser praticada[1].

Acho boa essa colocação do Bucci, porque dá sentido à ideia de “amor intransitivo” em que esse afeto não depende do outro para se manifestar. O amante dessa qualidade de amor ama todas as coisas: desde as pedras do caminho – seres inanimados; às árvores, florestas, flores – seres distantes de nossa humana realidade; assim como ama os animais e semelhantes. Algo muito parecido com que dizia Buda.

O amor não pode ser um dever. Quando me ponho a pensar que “devo amar”, essa forma de amor, dizem, é a imposição de uma lei; e toda lei criada redunda em penalidade[2]. O amor quando verdadeiro, imagino, não pune. Por isso o Cristo diz que devemos perdoar 70 vezes 7 vezes, ou seja, perdoar sempre. O que leva, automaticamente, à ideia de não se ofender nunca. Não é difícil perceber isto: só há necessidade de perdão quando, antes, houve ofensa.

Como toda virtude autêntica, é fácil entender o conceito, difícil é pratica-la. 

Está confuso?

Veja, o amor espiritual - o amor fino de Vieira, algo parecido com o conceito de amor fati não exige contrapartida, não se ofende quando não é retribuído, porque é intransitivo[3]. É um amor ideal, porém passível de se imaginar quando se trata de amor divino[4].

Dessa maneira e seguindo esse raciocínio, podemos inferir que a humanidade ainda não tem condições de chegar a este patamar. Por esta razão, Ubiratan Rosa vai dizer que “incapaz de amar o próximo, o ser humano pode ao menos respeitá-lo”.

E esse respeito deve vir, não por imposição, não por conta de uma lei que prevê uma penalidade. Esse respeito deve brotar da compreensão profunda das coisas, por isso costuma-se dizer que “o amor é a quintessência da compreensão”. Aquele que não compreende não consegue amar de verdade.

A meu juízo, não existe “lei do amor”. Ou o amor é espontâneo, ou não é. Não posso me obrigar a amar alguém ou algo abstrato como “pátria”. Esta última forma de amar é uma excrescência, um absurdo; e é absurdo, porque posso matar e morrer movido pela ideia de “amor à pátria”. De novo, cito Ubiratan Rosa: “Sociologicamente, é bom que eu viva com a pátria. Porém, é ruim viver pela pátria.”

Da mesma maneira manifesta-se o amor de mãe. Dizem, as mães possuem um amor que extrapola o senso comum, mas ainda não é o amor de que tratamos aqui, porque as mães nunca amam os filhos das outras mães da mesma forma como amam os seus próprios filhos. Portanto, esse amor não é intransitivo, porque, neste caso, os filhos são o objeto requerido por essa forma de amar, transitiva direta.

E é bom que saibamos disso: a nossa maneira de amar não é (e, talvez, nunca seja) comparada ao amor divino idealizado pela Teologia – um amor absoluto.

Ora, se o “amor divino” é absoluto, como intuímos que seja, então Deus não criou Lúcifer para perder-se na vastidão desértica do inferno. Muito menos nós – suas criaturas. Se assim não fosse, seria uma intolerância vinda do Criador, o que implicaria numa intolerância absoluta.

Se o meu raciocínio estiver correto, a doutrina fundada por Kardec tem problemas quando trata do livre-arbítrio: Deus nos deu liberdade para escolher, mas nossas escolhas nem sempre, quase sempre, não são boas, e somos punidos por conta delas! Não eternamente na laje congelada do nono círculo,[5] mas com reencarnações punitivas, eufemisticamente chamadas de “corretivas”, “pedagógicas”.

Se assim fosse, Deus criaria uma cilada tanto para Lúcifer quanto para todos nós: se tenho livre-arbítrio e não o uso: sou medroso, então serei punido pela minha inércia, pela minha covardia. Contudo, se o uso e, desgraçadamente erro, sou punido por errar. Concluo que, perante o Criador, todos nós estamos submetidos a uma política divina de tolerância zero.

Se assim for, a pior intolerância é a divina.

Se assim for, que inveja sinto das pedras![6]

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Do livro “Vida Vício Virtude” da coleção Mutações organizada por Adauto Novaes.

[...] A tolerância, essa abertura de espírito, essa virtude menor, só existirá entre nós se traduzida em diálogos de qualidade.

[...]O sujeito vive sob a ilusão de que o ego basta, de que as respostas já estão dentro dele mesmo, de que a solução mora na expulsão do estrangeiro, no sonho de incendiar vivos os patrões, nas técnicas de sufocar a senzala ou as favelas, esses campos de concentração ordenados segundo critérios econômicos e não mais políticos ou étnicos ou religiosos. Alegam que não há o que dialogar com os que não se abrem para dialogar. Só matando. A ninguém está autorizada a sensatez. [excertos do citado ensaio]

[2] Nullum crimen, nulla poena sine previa lege é uma expressão latina: "Não há crime, nem pena, sem prévia lei", isto é, sem lei anterior que o defina. Fórmula traduzida do latim por Feuerbach, a qual sintetiza o princípio da legalidade, da reserva legal e da anterioridade da lei penal. Não há crime sem lei anterior que o defina. (Ludwig Feuerbach – Tratado de Direito Penal).

Fonte: https://sites.usp.br/cienciascriminais/feuerbach-tratado/

[3] Padre Antonio Vieira, já citado por mim, vai dizer:

O amor fino não busca causa nem fruto. Se amo, porque me amam, tem o amor causa; se amo, para que me amem, tem fruto: e amor fino não há-de ter porquê nem para quê. Se amo, porque me amam, é obrigação, faço o que devo: se amo, para que me amem, é negociação, busco o que desejo. Pois como há-de amar o amor para ser fino? Amo, porque amo, e amo para amar. Quem ama porque o amam é agradecido. Quem ama, para que o amem, é interesseiro: quem ama, não porque o amam, nem para que o amem, só esse é fino. (Vieira, Sermões).

Amor fati é uma expressão latina que significa 'amor ao destino', 'amor ao fado'. No estoicismo e na filosofia de Friedrich Nietzsche, significa ou trata-se de aceitação integral da vida e do destino humano mesmo em seus aspectos mais cruéis e dolorosos – aceitação que só um espírito superior é capaz.

[4] Por isso o poeta diz em seus versos:

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! / O amor na Humanidade é uma mentira. / É. E é por isso que na minha lira/ De amores fúteis poucas vezes falo.

Idealismo. Augusto dos Anjos.  Eu e outas poesias.

[5] Alusão ao nono círculo do inferno, o mais profundo deles, onde Dante situa os condenados a ficarem dentro de um lago congelado (Lago Cocite).

[6] Aqui faço referência ao conceito freudiano de “Pulsão de morte”, ou volta ao inorgânico.

Comentários

  1. Tolerância em certas circunstâncias
    Em relação à intolerância quero distância

    Diante de determinadas contingências
    A consciência me recomenda ter indulgência
    Mas nem consigo a tal da benevolência
    Desconfio que antes experiencio resiliência

    Assim nessa rotina de constâncias
    A vida nos ensina a importância
    De amar em consonância
    Com a divina substância

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