Imagem aérea da favela Paraisópolis (à esquerda) e Edifício Penthouse (à direita)
Cidade de São Paulo
Autoria do fotógrafo Tuca Vieira - Folha de S. Paulo - 2004
Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus
Mateus 5:3
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NOTA; Caso queira ouvir o texto, segue o link:
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Quem seriam esses “pobres” por quem Jesus tem em alta conta a ponto de prometer-lhes uma vida de máxima felicidade?
A pergunta brotou da leitura do livro Tanto por fazer – o testamento de um serial killer de Theodore Dalrymple – pseudônimo de Anthony Daniels médico psiquiatra inglês.
Nesse livro – uma história ficcional, o autor, por intermédio de seu personagem mostra o que pode acontecer quando um ser humano nasce e cresce num ambiente hostil, violento, de vícios, de idas e vindas a reformatórios e inúmeros abusos sofridos.
É curioso notar que o assassino, em muitos trechos do livro, confronta o que ele faz com os usos e costumes de uma sociedade doente e incubadora de monstros.
Para construir a história, Dalrymple não se baseia em romances que leu; em filmes a que assistiu. Antes de aposentar, foi médico de prisões psiquiátricas na Inglaterra e, por força da profissão, ao longo dos anos, fazia visitas periódicas às famílias de presos em bairros periféricos de Londres, estando em contato direto com a vida dessas pessoas. Suas narrativas são muito desabonadoras e vão da crueza observada naqueles guetos à uma fina ironia ao falar sobre as condições degradantes em que viviam (e vivem) milhares de cidadãos ingleses e a deterioração observada. Esses carentes crônicos sob a autoridade do Estado com sua política de “bem-estar social” acabam, por gerações, na condição de “assistidos” no qual e pelo qual não há exigências de contrapartida pela ajuda recebida gerando um ciclo vicioso e sem solução no horizonte[1].
Lá, na Inglaterra, conta Dalrymple, são guetos formados por blocos de apartamentos sociais sujos e fedorentos engolidos por lixo de todo o tipo. Aqui, no Brasil, são enormes agrupamentos vivendo em favelas eufemisticamente[2] chamadas de “comunidades”.
Creio, marxistas diriam que esse termo “comunidade” revela uma artimanha capitalista que convence os moradores desses agrupamentos na ideia de “inclusão” induzida pela semântica[3].
Sim, favelados e não favelados convivem no mesmo locus urbano, porém separados por muros fortificados que revelam as profundas discrepâncias entre os extremos sociais com um aparato de segurança a serviço dos que moram nos condomínios de luxo. (ver foto de abertura deste texto).
Dessa realidade, brotam constantes conflitos e crises próprias do regime capitalista (neoliberal de caráter predatório, penso eu).
Embora dentro dessas comunidades empobrecidas - em sua maioria trabalhadores de grande valor moral - existam movimentos de conscientização para uma mudança em direção a uma sociedade mais justa; esforços para melhorar as condições materiais, essas iniciativas pontuais ainda são insuficientes para promover mudanças estruturais e, também, porque essas mudanças são reformas que ajustam pontos de crise, o que difere de uma revolução; isto porque essas reformas operam dentro da lógica capitalista vigente. O espírito de empreendedorismo que surge nas favelas é um sintoma dessa lógica.[4]
A meu ver, numa visão conjuntural, caso esse modelo capitalista se mantiver, vai “dar ruim”, porque explodirão crises seguidas e cada vez mais complicadas e com grau de violência cada vez maior.
Não sou ingênuo de pensar que esse ou aquele plano engenhoso submetido a planilhas de diversas cores ideológicas bem desenhadas poderão resolver problemas tão complexos. Já disse anteriormente que a vida não cabe em planilhas, nem em projetos utópicos como o da chamada transição planetária – uma espécie de reengenharia social de viés moralista delirante.
É fácil criar paraísos imaginários e artificiais; é gostoso, traz
conforto até que a realidade bata à porta de nossa existência derrubando-a, não
raro com violência.
Não é disso que precisamos.
Jesus e os “pobres”
Eram esses “pobres”, dos extensos guetos espalhados pelo mundo, a que Jesus aludia?
Creio que não, porque ele acrescenta o complemento “espírito” à palavra “pobre”. “Espírito” no sentido metafísico, imaterial como pretende a doutrina espírita. Portanto, o Cristo tratou das expressões “rico” e “pobre” não na dimensão material, física, mas numa chave psicoespiritual.
Não posso deixar de mencionar uma passagem bastante estranha em que Jesus reclama a atenção dos discípulos quando estes atendiam aos necessitados. A passagem é a seguinte:
Quanto aos pobres, sempre os tendes ao vosso lado, e os podeis ajudar todas as vezes que o desejardes, todavia a mim nem sempre me tereis. (Marcos, 14:7)
A atitude de Jesus causa estranheza, porque:
1)
Os discípulos não jogavam pôquer ou truco; estavam atendendo às
pessoas que os procuravam com variadas queixas!
2) Uma leitura rasa pode levar ao entendimento de que Jesus está fazendo birra porque não tem a atenção dos discípulos quando a exige, não importando o que estão fazendo.
A meu ver, o autor do texto evangélico, faz referência a um trecho de Deuteronômio (15:11)[5]
Nunca deixará de haver pobres na terra; é por esse motivo que te ordeno: abre a mão em favor do teu irmão, tanto para o pobre como para o necessitado de tua terra!
Jesus, segundo a tradição cristã, é o Cristo. Entendo que o Cristo é uma condição espiritual que todos nós trazemos em potência a qual, em tese, em Jesus manifestava-se em ato.
Portanto, podemos inferir que Jesus dizia aos discípulos:
como vocês ainda não atualizaram a potência crística, e só vez ou outra surgem alguns sinais pontuais dela (daí a expressão “nem sempre me tendes”) os pobres sempre estarão aí. A partir do momento em que essa potência se manifestar em ato, na maioria dos seres humanos, não haverá mais pobres sobre a Terra, ou na pior das hipóteses, os haverá em número bem reduzido.
Com essa leitura, fica evidente que a pedagogia de Jesus estimulava a todos que investissem no desenvolvimento do “cristo” que todos nós trazemos e assim, naturalmente, como consequência, o Reino de Deus seria implantado na Terra como o é no “Céu” da prece ensinada aos seus discípulos[6].
Em outras palavras: seríamos como um caroço de abacate (potência), enquanto Jesus e outros que por aqui passaram já são abacateiros (ato); e dão frutos em abundância.[7]
Portanto, nem todo pobre alcançará a bem-aventurança apenas por ser pobre; e isso induz-nos a um segundo tópico: nem todo rico será desgraçada e irremediavelmente condenado a não alcançar aquela alegria divina. Os parâmetros são outros.
No regime capitalista as palavras “pobre” e “rico” são relativas quando comparadas. E é assim que nos referimos quando fazemos a avaliação de alguém que consideramos “pobre” em comparação a alguém que vive na “riqueza”.
Por exemplo: alguém que possui uma casa bem pequena, em um bairro periférico e possui o básico para viver com dignidade, comparado a alguém que possui várias mansões em praias paradisíacas; aquele será considerado “pobre” e este, “rico”.
É importante observar que, ao fazer esse tipo de comparação, somos pegos pelo condicionamento psicológico de gerações inteiras submetidas ao modo capitalista de operar: uns (a minoria) podendo possuir inúmeras e extensas propriedades, enquanto outros (a maioria) com quase nada. E nessa lógica achamos que os pobres sofrem e os ricos não. Então, sentimos pena do pobre – que é gente humilde e dá vontade de chorar[8].
Embora seja razoável pensar que é melhor viver com mais recursos do que com pouco ou nenhum, como dizia, ironicamente, um velho amigo: é melhor ser um rico feliz, do que um pobre triste, cabe a pergunta: qual a garantia que temos para afirmar que os ricos vivem felizes[9] e os pobres vivem numa completa infelicidade, excetuando-se a inveja do tênis[10]?
Contudo, pela ótica do Cristo, essa oposição não existe, porque sua proposta é investir fundamente no desenvolvimento íntimo de cada um. Isso não é nada fácil.
Eu digo, repito e trepito[11]: Jesus não é fofo e o seu Evangelho[12] não é uma boa notícia para os mimados e preguiçosos. É um desafio enorme para cada um de nós. E ponto.
A proposta do Cristo compara-se a um martelo que transforma em pó nossos empedrados valorzinhos habituais[13].
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Uma experiência pessoal
Meu filho do meio estudou numa grande universidade pública. À época, passávamos por grande dificuldade financeira por conta do fechamento compulsório de uma fábrica de calçados que eu abrira em sociedade com um grande amigo. Descapitalizei geral, mas sobrevivi. Contudo os meus três filhos sentiram a pancada de maneira avassaladora. Não é minha intenção ficar choramingando cenas tristes da minha biografia para obter comiseração, sirvo-me dessa passagem apenas para ilustrar o meu argumento:
Nessa grande universidade havia um professor que gostava de passar a impressão de ser engraçado, mas, hoje, os seus gracejos teriam sido classificados como bullying[14]. Esse tipo humano costuma pegar alguém como vítima preferencial, no caso, esse alguém era o meu filho que, à época, sofria o impacto de nossa situação econômica já descrita.
Certa vez, esse agressor passou dos limites: ao ver meu filho transitar pelo corredor, arrastou-o para dentro da sala, e na frente dos alunos presentes o humilhou tratando-o como um exemplar daquilo que considerava fora dos padrões de seu duvidoso gosto. Sentiu-se satisfeito depois de arrancar gargalhadas da turma presente, em seguida, dispensando a vítima de seu escárnio.
Acontece que, nessa história, há um detalhe curioso – para não
dizer trágico - e que merece atenção: esse professor era espírita atuante na
cidade em que vivia e lecionava; fazia constantes palestras a convite dos
centros espíritas da região, e as fazia com eloquência e voz embargada de
emoção ao tratar dos diversos temas contidos em O Evangelho Segundo o
Espiritismo.
Suas apresentações arrancavam aplausos e agradecimentos de quem o ouvia. Era lindo ouvi-lo.
Anos depois, lendo Dalrymple, esbarrei num trecho do livro citado no início deste texto, onde o assassino em série narra as agressões que sofria, desde cedo, e o que se passava na escola onde estudava, para tentar justificar a sua conduta assassina cozida na mais desgraçada vida que levou, impedindo-o de chegar, segundo ele, aos bancos da universidade. Vamos a um trecho:
Mesmo meus professores, que deveriam ter sido meus protetores, tomavam o partido das outras crianças por causa de minha esquisitice, e faziam piadas sobre mim na frente de toda a classe.
Seria desnecessário dizer que o meu filho, por temperamento e por formação, não se tornou um assassino em série. Pelo menos isto se salvou da educação e do cuidado que recebera.
Onde quero chegar?
De tudo o que foi dito, posso deduzir que pessoas as quais Jesus chamava de “pobres de espírito” não têm nenhuma relação com posição social, uma formação sofisticadamente acadêmica e nem com o contato intelectual diário com o Evangelho Segundo o Espiritismo ou outro livro sagrado qualquer.
Tanto pela geografia quanto pelo tempo passado, não pude confrontar aquele sujeito para indagar-lhe qual parte do Evangelho eu não entendera, depois de tantos anos que dediquei ao seu estudo, e não ter aprendido suficientemente como humilhar pessoas sob minha orientação e guarda.
Só posso entender que, os “ricos de espírito” nunca serão bem aventurados.
E não serão bem aventurados porque, apesar de seus lustrosos diplomas, de sua ampla cultura leiga e religiosa, falta-lhes o amor e a empatia pela dor do próximo.
(No momento em que escrevo, desconfiado, indago-me: seria essa
minha forma de fantasiar o desejo de vingança àquele boçal letrado?)
(Seria um traço de sociopatia daquele professor, construído a partir de uma infância miserável?).
Jamais saberei.
O fato é que, no final das contas, toda a pompa e circunstância que supomos carregar na vida de relação desaparece com a morte.
Vale citar Resumo de Adélia Prado[15], no livro Bagagem.
Gerou
os filhos, os netos,
deu
à casa o ar de sua graça
e
vai morrer de câncer.
O
modo como pousa a cabeça para um retrato é o da que, afinal, aceitou ser
Dispensável.
1906-1970
Saudade dos seus, Leonora.
Resta-me remar, crendo ter visto uma luz do outro lado do rio[16].
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Para quem quiser aprofundar na obra de Theodore
Dalrymple indico “A Vida na Sarjeta”.
É óbvio que o chamado
“estado de bem-estar social promove, em geral, grandes benefícios para uma
parcela da população em condições materiais precárias, mas os seus efeitos
colaterais também trazem consigo a etiologia de uma doença social crônica.
Além, é claro, dos benefícios retirados dessa cronicidade pelos políticos
populistas os quais alimentam essa situação para se manterem no poder. A
pergunta que surge – e não tenho resposta para ela é: os benefícios sociais
retirados dessa política pública compensariam os seus efeitos deletérios?
Os otimistas diriam que
sim; os pessimistas diriam que não; os céticos diriam talvez.
[2] Eufemismo é
uma figura de linguagem utilizada para suavizar situações desagradáveis. Pelo
uso do eufemismo poderíamos dizer que se pode pegar um limão muito azedo e
transformá-lo numa limonada. O autoengano é uma bênção diante da realidade nua
e crua.
[3] Comunidade,
em Biologia, é o conjunto de populações de diferentes espécies que vivem em
interação em um determinado lugar.
[4] É curioso o efeito psicológico criado no empreendedor
que se sente “dono do próprio negócio”, “independente”, mas não passa de um elo
da corrente neoliberal capitalista. A curto e médio prazo esse empreendedorismo
cria condições favoráveis a um certo grupo de indivíduos, mas a longo prazo
aumenta a competição e a selvageria que redundarão em novas crises, porque
trata-se de correções setoriais das camadas sociais mais baixas e não uma
revolução que mexeria na estrutura do sistema como um todo.
[5] Deuteronômio é
o quinto livro do Antigo Testamento da Bíblia cristã.
[6] Venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade assim
na Terra como no Céu.
[7] Essa ideia é tomada de Aristóteles, filósofo grego que
viveu antes de Cristo e que criou o conceito de “enteléquia”.
[8] Referência à canção “Gente humilde” Chico Buarque de Holanda/Vinícius de Moraes/Garoto.
[9] Sugiro o icônico filme de Federico Fellini “A Doce
vida”. Esse filme retrata a vida tediosa de milionários. Esse tédio,
paradoxalmente, vem do fato de nada lhes faltar.
Num sistema de
desigualdade social gritante, há dois grupos distintos: o dos pobres que morrem
de inveja dos ricos, porque lhes faltam as facilidades da riqueza; e o dos
ricos que morrem de tédio, porque têm todos os desejos de consumo saciados.
(ler A Felicidade, desesperadamente do filósofo André Comte-Sponville,
Martins Fontes).
[10] A expressão “Inveja do tênis” foi cunhada pelo
filósofo Renato Janine Ribeiro no artigo em que discute a violência crescente
de grupos de jovens carentes que roubavam e, até matavam, jovens que ostentavam
tênis caros. (ver A Boa Política, capítulo 3).
O trocadilho faz alusão
a expressão criada por Sigmund Freud: “A inveja do pênis” que propunha o
seguinte: no seu desenvolvimento psicossexual, ao constatar a falta do pênis em
seus corpos, as meninas desenvolvem esse sentimento que resultaria, mais tarde,
em submissão
Estudiosos da
sexualidade feminina, como Natalie Angier, vão refutar essa ideia de Freud
considerada machista para os padrões atuais.
[11] Expressão utilizada por um personagem que não me lembro o nome.
[12] A palavra “evangelho” tem origem no grego e significa:
“boa nova”, boa notícia”.
[13] Aqui, faço um gancho com o
pensamento de Nietzsche que propunha uma transvaloração dos valores. Friedrich
Nietzsche, filósofo alemão, expõe esse conceito na sua obra O Anticristo.
[14] Bullying resumidamente é uma prática violenta
física ou moral pela qual um indivíduo ou um grupo humilha e agride outra
pessoa que se torna alvo daquela agressão.
[15] Adélia Prado
(13/12/1935), nascida em Divinópolis-MG, é poetisa, professora, filósofa,
contista. Considerada a maior poetisa viva do Brasil.
[16] Referência à canção Al outro lado del rio
do médico, compositor e cantor uruguaio Jorge Drexler. Ganhador do Oscar de
melhor canção original.
Muitas reflexões. Toda comunidade deveria cultivar a ética da contribuição. Parece utopia, seja nos condomínios de luxo ou grotões mundo afora. Da minha parte sigo a tentar decifrar o que há na terceira margem do rio, como ermitão, místico, filósofo e, sobretudo, louca.
ResponderExcluirEste texto está um arraso, em duplo sentido:
ResponderExcluirCausa vergonha porque reconheço as não poucas vezes que agi numa pobreza de espírito. Quanta pequenez.
E concomitante a leitura acrescenta uma reflexão profunda dos abundantes níveis espirituais.
Acrescidas das refinadas pitadas de humor:
"Os discípulos não jogavam pôquer ou truco (...)". "Jesus não é fofo (...)"
Muito bom!!