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CONSOLAR OU INQUIETAR?

Xilogravura -  ABANDONO - Oswaldo Goeldi (1895-1961

(A versão em áudio deste texto está disponível no Youtube - link abaixo)

https://youtu.be/vL2eiEULVoM

Mais tarde ou mais cedo, é quase inevitável perguntarmo-nos sobre se há bem e mal, se a vida tem sentido, se a morte é o fim, como podemos ter certezas, porque sentimos tanta dor, como somos realmente. Estas são algumas das questões suscitadas pelo que chamamos “inquietação filosófica”.

José A. Colen

Da Inquietação Filosófica. Conversas sobre Questões de Vida ou de Morte

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Boa pergunta para quem estuda doutrina espírita, ou busca uma corrente espiritualista qualquer.

Quando uma tempestade bate à nossa porta – e isso acontece com frequência na vida de seres humanos normais – a visita a um templo, a leitura de obra que propõe um certo afastamento do mundo objetivo, concreto e suas demandas, a conversa franca com um pastor, ou dirigente religioso não deixa de ser um bom caminho para aquele que sofre. Principalmente aquele que não tem possibilidade de pagar por uma terapia qualquer; uma hospedagem num SPA ou coisas semelhantes.

Contudo, como eu já disse em textos anteriores, a positividade do consolo tem limites e possui um lado menos visível que escapa do olhar menos crítico.

Esse lado sombrio do consolo – se assim posso me expressar, funciona bem na superfície e deve ser trabalhado para não se tornar uma espécie de vício, porque sua duração é curta.

Perdoem-me aqueles que não concordam com isso, mas o consolo a longo prazo traz mais prejuízos do que soluções. Principalmente se aplicado às questões de ordem psicológica, moral, ética, política, social.

Jesus já havia deixado a dica de como funciona a prática de consolar, na prece ensinada aos seus discípulos, por exemplo, o consolo dado a quem tem fome:

O pão nosso de cada dia nos dai hoje[1].

Atenção: é “cada dia”; é “hoje”; não sempre.

No meu entendimento, é explícita a ideia que Jesus passa de que não podemos consolar alguém de coisas básicas de sobrevivência por longo tempo, porque, certamente, ele entendia que essas coisas não podem faltar para ninguém, uma vez que a Terra oferece condições para que todos possam usufruir de seus mananciais.

É por isso que, em outro momento, Jesus dirá que nosso senso de justiça deve funcionar como a necessidade que temos de beber e comer[2].

Caso insistamos em consolar além de certos limites – necessários, diga-se de passagem, esse consolo terá o mesmo resultado da aplicação de fentanil[3] em alguém com dor intensa: sua eficácia é quase instantânea, mas sua duração é muito curta.

Citei o fentanil de propósito, porque o fentanil, assim como o consolo pode viciar, guardando as devidas proporções e consequências. O fentanil tem efeito devastador quando usado fora do âmbito estritamente médico, enquanto o consolo vicia a alma.

Outro prejuízo que a prática do consolo indiscriminado pode trazer é o bloqueio do amadurecimento de quem o recebe. E aqui cabe uma ressalva: é preciso muito cuidado neste ponto, porque muita gente se nega a praticar o consolo justificando-se com o clichê: “ao invés de dar o peixe, deve-se ensinar a pescar”.

O olhar cauteloso deve levar em conta as condições do “aprendiz de pescador”. Há uma linha tênue que separa as diversas situações postas e impostas pelo simples existir. A complexidade da vida na Terra não deve ter soluções muito fáceis e imediatas; ela exige muita observação, muito estudo, muita calma, muito respeito e, mais ainda, muito amor. Sem essa atenção e sem esses requisitos, o ato de consolar será como o metal que retine como já dizia Paulo aos Coríntios[4].

As escolas espíritas deveriam oferecer um conteúdo no qual continuasse exaltando a necessidade de consolar tantos seres humanos quanto possível, mas, também, oferecer um ensino que inquietasse os seus iniciados com a mesma veemência que o faz com a consolação.

Sem essa inquietação provocada, a doutrina espírita terá sua contribuição à humanidade prejudicada profundamente pela falta de reflexão filosófica e um risco enorme de se tornar uma seita formada por grupos afetados, robóticos e fanatizados.

É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar.[5]

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[2] Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; (Mateus, 5:6)

[3] fentanil é um poderoso opioide sintético semelhante à morfina, mas 50 a 100 vezes mais potente.

Fone: https://hospitalsantamonica.com.br/o-poder-devastador-do-fentanil/ 

[4]Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o sino que ressoa ou como o prato que retine.

1ª Epístola aos Coríntios, 13-1

[5] Referência à canção “Copo Vazio” composta por Gilberto Gil.

Comentários

  1. Esse texto vem muito ao que estou vivenciando nesses tempos, estou aprendendo a questão do “cada dia” é “hoje” não sempre. A vivência do dia a dia está me mostrando isso. Ótimo texto.

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  2. Reflexões sobre seu excelente texto: Salvas as felizes exceções, Humberto, todos os segmentos da sociedade responsáveis por algum tipo e profundidade de formação estão falhando na responsabilidade de tornar seu tutelado um indivíduo curioso, interessado, analítico, emocionalmente firme, ético, proativo etc (quem diz que é fácil? Rs). Estamos todos perdidos, num século em que avanços em várias áreas de conhecimento são rápidas e aparentemente sem limites, procurando num contexto caótico o que somos e o que fazer conosco dentro do coletivo. Há muita tensão, agressividade e falta de paciência em nós e no nosso entorno. A educação escolar está despreparada para arcar com a formação que lhe apontam como sua responsabilidade. A família como outrora era concebida, primordial lugar de formação, tem deixado lugar para indivíduos inseguros, desprotegidos, indesejados ou mimados em demasia. Então, nesse contexto, não é possível se pensar que o caminho para atrair e manter as pessoas sob seu controle é dar-lhes consolo indeterminadamente, porque inquietação traz desprendimento? Não é mais fácil lidar com um rebanho comportado do que uma manada em dispersão? No âmbito pessoal, queremos voltar ansiosamente para o chão firme e familiar, sempre que nossas vidas entram em turbulência.

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  3. Espiritimo pode, e deve:
    consolar a quem busca acolhimento,
    inquietar a quem duvida do senso comum,
    libertar consciências de dependências,
    apontar à riqueza interior e
    educar a quem se dispõe a tal ato.

    Por sua vez, o adepto pode, e deve:
    dialogar com outras áreas de conhecimento,
    duvidar das mensagens artificiais,
    separar a autoria do conteúdo,
    reservar o direito de autonomia intelectual e
    preservar os valores humanitários em si.

    Para ambos conjugarem-se há de se considerar a facticidade e o tempo de maturidade das ideias. Demora.

    Não obstante sacudamos os pós das sandálias e persistamos com as ebulições filosóficas.

    (Postado pela 1° vez, em 27dez).

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