Quem se compreendeu por
completo a si mesmo
duvida por completo de si
mesmo [...]
Quem duvida de si mesmo
começa
a saber quem é.
Fílon de Alexandria, Sobre
os Sonhos.
(citado por Peter Sloterdijk, Depois de Deus, Relógio D´Água Editores, Portugal)
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Precisamos mais Atenas e menos Jerusalém[1].
Acho que o ensino espírita deveria ter em seu extenso currículo, o estudo do Ceticismo e do Estoicismo – ambas escolas filosóficas[2]. Veja o que diz o filósofo Pondé:
O desafio do cético não é a dúvida, mas a confiança. A
disciplina cética, quando praticada sistematicamente, torna-se uma segunda
natureza, como dizia o grande Aristóteles acerca da virtude praticada ao longo
da vida.
O ceticismo é uma disciplina, não um surto depressivo. Como
tocar violino, lutar boxe ou jogar tênis. O ceticismo pode ser praticado em
diversas áreas do conhecimento e da vida em geral: na ciência, na moral, na
religião (o caso mais fácil), na política, na geopolítica.
Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 26/03/2023
Alguém levantará a questão: mas os ensinos do Cristo não bastam?
Eu diria que não. Seus ensinos são necessários, mas não suficientes. Jesus não veio esgotar todas as possibilidades de pensar e viver. Se assim fosse, seria o fim da história. O limite está no infinito.
Além disso, é evidente que muito do material que fundou o Cristianismo sofreu influência de fontes greco-romanas; Jesus não foi fundador dessa religião; isso ficou por conta dos que vieram depois dele – Paulo seria o exemplo máximo. No entanto, é preciso lembrar que Paulo não conviveu diretamente com Jesus. O seu pensamento foi formado por narrativas feitas pelas pessoas que com o Mestre estiveram diretamente ligados e ouviram Dele próprio as suas máximas.
Apesar de sua indiscutível grandeza, Paulo não conseguiu livrar-se de sua formação rabínico-farisaica. Sua narrativa muito baseou-se na ideia do Messias dando um caráter mítico ao Jesus histórico, humano, concreto. Essa mitificação gerou a ideia de Jesus-Deus. E prevaleceu ao longo dos séculos.
No meu entendimento, o chamado “espiritismo evangélico” segue essa direção paulina.
Para chegarmos a um estágio laico de doutrina espírita será preciso trabalhar para separar o entulho que se criou, depois da morte de Jesus, para se ter o ensino mais próximo de sua proposta. Kardec fez essa tentativa em seu O Evangelho Segundo o Espiritismo, mas, do meu ponto de vista, não teve êxito.
Muita gente puxou a brasa para a sua sardinha nessa história. Não considero uma heresia, mas uma tendência humana de assim agir. Sempre serão necessárias revisões, mudanças de paradigmas, ajustes na obra humana.
Acho que uma maneira de peneirar os pedregulhos para separar as gemas seria o estudo comparado de vários pensadores da antiguidade e verificar o que tem de comum entre o pensamento cristão do restante. Essa é, para mim, a grande dificuldade da pedagogia espírita vigente.
É óbvio que isso exigirá dos estudiosos um grande empenho nessa dura e difícil tarefa. O seu desafio está na maior imparcialidade em dar mérito a quem merece. Mérito até para os que nunca foram cristãos. Talvez, seja improvável que ocorra, mas temos de tentar, tentar e tentar.
Eu começo por aí e acho que isso dá uma boa salada, mesmo que contrarie o paladar de irmãos abraçados a um farisaísmo – aí sim, pouco palatável. Esses novos fariseus pensam que podem concretar ideias pela fixação na manutenção de uma só corrente de pensamento dentro do movimento espírita.
Para livrarmo-nos dessa armadilha conceitual trazida na bagagem desses sacerdotes encalacrados em seu sistema de crença, precisamos alimentar a ideia, necessária, de um Espiritismo laico.
Para os que não sabem, laicidade não é o mesmo que ateísmo e tampouco representa oposição à religião, mas a liberdade e o direito de cada um em cultuar suas crenças religiosas sem a hegemonia de nenhuma delas.
Vou desenvolver esse tema em outra postagem onde discuto que o Espiritismo não é religião e muito menos cristão. Não porque eu quero, mas porque ele - o Espiritismo - não pode ser religião e nem cristão.
Peço vênia aos irmãos que não pensam como eu, classificando-me de excessivo. Tenho consciência da inscrição no Templo de Apolo em Delfos: “nada em excesso”.
Minha intenção, assim como o meu desafio, não é me transformar em guru que vomita regras como fazem os moralistas, mas o de contribuir para repensar um modelo pedagógico mais amplo e libertador. Para isso, acredito, que preciso me posicionar entre as forças do autodomínio e ponderação representadas pelo deus Apolo; e da ruptura e do rompimento de fronteiras representadas pelo deus Dionísio[3].
Portanto, a postura, a que me refiro, pode, em certa medida, causar um temor e tremor na alma. Contudo, a meu juízo, vale a pena caminhar na investigação da existência humana pelos caminhos tortuosos da vida mesmo que custe o meu sossego.[4]
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Eu citei Fílon de Alexandria, porque alguns o
consideram na fronteira entre a Filosofia Grega e o pensamento cristão.
Faço referência a
Atenas por simbolizar a razão; e Jerusalém por representar a fé.
[2] Ceticismo:
sistema filosófico fundado pelo grego Pirro (318 a.C. – 272 a.C.). Defende que
não temos capacidade para saber a verdade absoluta, derivando dessa ideia o
exercício constante da dúvida. Já o Estoicismo escola filosófica fundada
pelo filósofo grego Zenão de Cítio (334 a.C. - ?). defendia que todo o Universo
seria governado por uma lei natural e racional – o Logos. Deriva dessa
ideia o comportamento estoico que preconiza o “ajustamento” sereno diante das
diversas situações da existência. Esse ajustamento que chamavam de ataraxia
não pode ser confundido com resignação - submissão passiva diante de
situações incontroláveis -, mas de uma postura ativa e profundamente racional
ante a contingência – fatos imprevisíveis que escapam ao controle.
[3] Referência citada pelo filósofo Eduardo Giannetti:
A inscrição no templo de Apolo em Delfos, centro
religioso e geográfico do mundo grego, abriga uma peculiar instabilidade
lógica. Submeta o "nada em excesso" à sua própria imagem no espelho:
a injunção moduladora do princípio da moderação também se aplica reflexivamente
a si mesma? É possível exceder-se e ir longe demais no intento de nunca ir
demasiado longe; de nunca ultrapassar a certa e sóbria medida? É possível,
enfim, pecar por excesso de moderação? Ao mirar-se no espelho, a força
moduladora do preceito délfico se vê compelida a baixar o tom e moderar a si
mesma: nada em excesso, inclusive na moderação. Mas isso não é tudo. Ao
argumento lógico podemos acrescentar um complemento ético. Como saber até onde
ir? Como descobrir a justa medida? Se nunca testarmos os limites, jamais
teremos condições de determiná-los, visto que só aqueles que ousam e se
arriscam a ir longe demais são capazes de chegar a saber quão longe se pode e,
sobretudo, se deve ir. "A estrada dos excessos", reza um dos
provérbios do inferno de William Blake, "leva ao palácio da sabedoria. “A
subversão dionisíaca, quem diria, pulsa no âmago da razão apolínea”.
Trópicos Utópicos, seção nº 5 Nada em Excesso, Cia das Letras, páginas 19 e 20.
[4] Referência à obra Temor e Tremor do filósofo
norueguês Soren Kierkegaard (1813-1855).
As religiões, em suas pré-histórias, desenvolvimento e o que se tornaram nesses tempos, são construções humanas.
ResponderExcluirIngenuamente muitos crentes imaginam que do jeito que está sempre foi desde o início.
Para um cientista da religião, o espiritismo "tornou-se" uma religião mesmo que os seus adeptos neguem essa constatação.
Ainda estamos muito distante de um movimento libertador, de autonomia consciencial.
E como a história é cíclica, ora prevalece o período apolíneo, ora o dionisíaco, penso que outras vertentes se constituirão a partir do que estamos vivenciando nesses tempos.
É questão de tempo...