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OS AFLITOS


Arte: Tiago Spina Montagem: Cena de bomba de Napalm lançada sobre aldeia no Vietnam pela força aérea americana.
(fotografia por Nick Ut em 1972) e a tela O GRITO de Edvard Munch.

Nesta postagem, resolvi inovar e ousei postar juntamente com o texto um link que dá acesso ao áudio. Esse texto é a transcrição de palestra que fiz ao longo do tempo em que estive mais próximo do movimento espírita.
Peço, portanto, a tua compreensão pela sua extensão.
Grato por estar aqui.




 Alegrai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, perseverai na oração;

Carta de Paulo aos Romanos capítulo 12 versículo 12

Somos uma espécie desgraçadamente angustiada.

Martin Heidegger, Ser e Tempo 

Angústia, afeto que não engana.

Lacan, Livro X                                                                    

+++++++++++++++

Nas chamadas “bem-aventuranças” – discurso feito por Jesus, também conhecido como “Sermão do Monte”, entre outras coisas, o Mestre diz:

 Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.

Evangelho de São Mateus, Capítulo 4 versículo 4

 No “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, Kardec dedica um capítulo inteiro para falar sobre o assunto.

(ver O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V Bem-Aventurados os aflitos.)

Há muito tempo, dediquei uma parte dos meus estudos ao tema das aflições humanas.

Por considerar que minha vida, até aqui, foi como um mar tranquilo sem muitas tempestades, tentei, por minha conta, fazer uma imersão no assunto para poder sentir com empatia esses momentos difíceis da vida.

Esse trabalho resultou numa palestra que fiz, inúmeras vezes, em diversas cidades do interior de São Paulo.

 Primeiro ponto: o sofrimento pode ter origem em duas situações:

1)    O sofrimento pela dor física

2)    O sofrimento pela dor psíquica

 A priori, a dor física deve cessar com a morte. O espírito que deixou o corpo físico não poderá sentir dor física, mas sensação de dor. A respeito disso, os espíritos informam que em alguns casos especiais e por conta das ligações entre corpo físico e perispírito[1], haverá sim, uma dor semelhante a dor física, contudo será passageira.

Ao contrário da dor física, a dor psíquica que, por definição, acompanha o espírito, ou seja, dependendo de como morremos poderemos sofrer muito depois da morte por conta daquilo que carregamos na forma de sentimentos.

Feita a ressalva, vamos em frente...

 Fiz o seguinte caminho:

 BUDISMO

 No Budismo encontrei as 4 Nobres Verdades onde Buda declara:

1)    A verdade do sofrimento: todos os seres vivos sofrem[2];

2)    A verdade da origem do sofrimento: o sofrimento está estreitamente ligado ao apego à ilusão[3];

3)    A verdade da cessação do sofrimento: que é possível deixar de sofrer;

4)    A verdade do caminho que leva à cessação do sofrimento: Buda indica o caminho óctuplo, ou seja, um caminho de 8 passos[4].

O fato de sermos criaturas naturalmente egoístas faz de nós vítimas do próprio apego.

Uma leitura superficial pode nos levar a questionar sobre como poderemos cessar o sofrimento se nem sempre esse sofrer está relacionado diretamente à nossa pessoa?

Por exemplo, alguém que muito amamos está em sofrimento atroz; não dá para sermos indiferentes a essa situação, então sofremos empaticamente[5].

Sigamos com o Budismo.

O Buda original[6], também falou das 4 fontes do sofrimento.

As quatro fontes do sofrimento, segundo Buda, são:

1)    O Nascimento

2)    A Velhice

3)    A Doença

4)    A Morte

As fontes de sofrimento indicadas por Buda, a meu ver são óbvias e incontornáveis – não dá para fugir delas. Porém não podemos deixar de entender que o sofrimento por essas fontes vai depender da perspectiva em que são vistas. Por exemplo, há casos em que a morte significa alívio pelo sofrimento vivido antes dela. Contudo, há na morte uma ambiguidade, pela qual muitos sofrem – que é o apego.

Quando morremos, por algum processo patológico, deixamos de sofrer a dor física mas não deixamos de sofrer pelo apego que continuará depois da morte.

Uma coisa é certa: por serem elementos vinculados ao próprio existir na Terra, querer fugir deles é aumentar o grau de sofrimento. Aceitá-las inteligentemente, isto é, sem forçamentos, poderá curar algumas feridas e, também, aliviar o peso do inevitável.[7]

Vamos aprofundar um pouquinho nessas fontes do sofrimento apontadas por Buda:

1)    Sobre o nascimento: Otto Rank[8] - contemporâneo de Freud, publicou um trabalho em que defende a teoria do trauma do nascimento. Apesar de não ser consenso entre os que trabalham na área psi[9], o trauma do nascimento da teoria de Rank tem boa aceitação até hoje.

É espantoso notar que 2.500 anos atrás Buda tenha percebido que o nascimento carrega consigo um trauma que, se não cuidado, trará problemas para o resto da vida.

2)    Sobre a Velhice: a velhice é a antessala da morte, nem sempre, quase sempre, nesta antessala não haverá muito o que comemorar, por isso ela traz sofrimento.

Agravada por representar um período improdutivo – heresia num tempo em que a produtividade é a marca importante para manter um status social que cause admiração.

Além disso, a velhice representa a soma de todas as escolhas feitas na vida[10] - e nem sempre, quase sempre, nossas escolhas não são tão sensatas assim.

Há velhices felizes? Sim, as há, mas são exceções. A regra para uma boa parte da humanidade representa o peso dos anos de trabalho duro com pouco retorno na lógica capitalista predatória[11].

O aposentado – como aponta Alexandre Kalache -, a palavra “aposentado” é autoexplicativa – o aposentado deve ficar num aposento separado e ruminando lembranças e amargando solidão.

É verdade que, com as técnicas avançadas na medicina, a velhice tem sido retardada com certa qualidade. O problema está na ânsia de querer se manter jovem. É ridículo ver um velho tentando comportar-se como um jovem. O anacronismo de seu comportamento é aviltante, causando vergonha alheia[12].

Poucos, muito poucos sabem lidar com a velhice de acordo com os princípios taoístas – com o caminho do retorno como eles chamam.

Buda não quis dourar a pílula – falou que a velhice é fonte de sofrimento e ponto.

Basta lembrar a frase atribuída ao escritor norte-americano Stephen King: velhice é uma ilha cercada de morte por todos os lados.

3)    Sobre a Doença: dispensaria comentários falar sobre doença dentro da chave do sofrimento. Nessa pesquisa achei coisas muito interessantes e terríveis, também.

Por exemplo, a OMS – órgão vinculado à ONU que trata da saúde, define saúde da seguinte maneira: mais do que ausência de doenças, saúde é bem-estar físico, psicológico ou mental e social.

Ora, não precisamos ser muito inteligentes para percebermos que, nessas condições, ninguém poderá dizer que possui saúde integral.

Quando não são as condições endógenas - que são fatores internos de cada indivíduo os quais provocam doenças e morte;  serão as condições exógenas – fatores externos como guerras; água poluída; fome; falta de acesso a atendimento básico de saúde; condições de ordem político-econômicas etc.[13].

Depois disso, fui ao CID – Código Internacional de Doenças versão 10 (à época em que fiz a pesquisa). Lá me deparei com mais de 14 mil doenças catalogadas sem contar com as doenças causadas por choque mecânico! Mais ou menos 4 mil delas estão relacionadas aos períodos pré e pós-parto! Quer dizer, a encrenca começa logo cedo.

(risos)

De lá para cá, o citado catálogo sofreu mudanças e muitas enfermidades foram acrescentadas; sabemos que as doenças mentais têm aumentado consideravelmente.[14]

4)    Sobre a morte: mesmo para aqueles que estão convencidos de que a vida continua depois dela, esse acontecimento não deixa de ser traumático.

Alguns costumam afirmar que o Espiritismo matou a morte. Para mim, uma forma reativa de lidar com ela. Discordo de quem assim pensa, porque eu não sou Humberto; eu estou Humberto. Ao morrer, inevitavelmente, a persona[15] Humberto deixará de estar e de ser e passará à condição de  espírito com múltiplas experiências reencarnatórias.

Como já falamos anteriormente, sofremos por sermos apegados. É difícil perder a identidade e o nome que carregamos ao longo da existência. Não é fácil perder esse “nome” e tudo que ele, simbolicamente, carrega em seu entorno.

Para a estatura média da humanidade, essa dificuldade não é pecado, é natural que assim nos comportamos. Uma das consequências dessa perda é a saudade. Sentimento tão bem definido por Rubem Alves[16]. E solidão ou sensação desta.

Eu já disse em outro lugar deste Blog que o espírito que insiste em manter sua identidade terrena, depois da morte, revela um estado inferior de consciência, ligado, ainda, as convenções deste nosso mundo[17].

Talvez, por esta razão, o espírito que coordenava os trabalhos de Kardec não se manifestava com um nome, mas como uma entidade espiritual identificando-se apenas com a vaga expressão Espírito de Verdade.

Apesar do progresso na área da saúde juntamente com o avanço tecnológico, a angústia do morrer continua como sempre – firme e forte.

Por fim, a morte assombra o ser humano desde a mitológica expulsão do Éden[18].

Pelo exposto acima, concluí que Buda tinha razão.

OUTRAS FONTES DE SOFRIMENTO

A RESIGNAÇÃO COMO FONTE DE SOFRIMENTO 

A resignação pode ser mais combustível para a fogueira do ódio enraizado no coração humano. Neste caso, a resignação é um veneno para a alma, porque é a atitude ressentida de quem se dobra à subserviência normalmente na expectativa de receber migalhas. É uma miséria moral.

Será bênção quando autêntica, por isso, rara, e não é visível ao olhar alheio. O autêntico resignado não expõe suas dores e seus dotes espirituais para aguentar as injunções impostas pelas circunstâncias inevitáveis da vida. Não é subserviente. É sensato. Age naturalmente.

A TOLERÂNCIA COMO FONTE DE SOFRIMENTO

Mãe da resignação a tolerância, assim como a resignação pode ter dois caminhos...

Há um modelo de tolerância que brota de uma atitude estoica, isto é, o sujeito tem uma compreensão mais refinada da contingência[19] e a aceita por vontade própria e não subjugado por interesses inconfessáveis.

Há outro modelo de tolerância que não é certo, porque, neste caso, o tolerante o é por conta de sua covardia ou incapacidade de reagir a determinada situação que caberia uma reação mais enérgica.

Então, vencido pelas circunstâncias, ele se encolhe e sofre. O que significa que a alma continua roída pelo verme da inconformação, embora aparente o contrário.

Vejamos o que diz Montaigne sobre a virtude:

Aquele age certo; este virtuosamente. O ato do primeiro é de bondade, o do segundo de virtude. Dir-se-ia que a virtude pressupõe dificuldade e oposição e não pode existir sem luta. Talvez seja por isso que qualificamos Deus como bom, liberal, justo, mas não ‘virtuoso’, porquanto tudo o que faz é natural, não necessitando nenhum esforço para realizá-lo.[20]

Montaigne advoga a ideia, que me é simpática, de que a ação virtuosa, para que exista, deverá contar com a oposição do vício. Diferentemente do que ocorre com aquele que vive sem muletas para se sustentar, porém com a noção aguda da interdependência que caracteriza todos os seres.

A INVEJA COMO FONTE DE SOFRIMENTO

Esse tema é recorrente e acredito que os versos de Raimundo Correa[21] elucida bastante esse afeto tão triste:

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N'alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!"

A inveja é uma fonte poderosa de sofrimento.

Como é difícil para um fracassado, observar alguém bem-sucedido, ou que assim lhe pareça, sem que sinta um aperto no peito e um mal-estar difuso e profundo na alma!

O DESLOCAMENTO ARTIFICIAL DO PRÓPRIO LUGAR COMO FONTE DE SOFRIMENTO – Uma experiência pessoal

Os gregos antigos acreditavam que todos os seres possuem um papel no Cosmos[22]. O Universo seria como um grande mecanismo no qual cada um representasse uma peça. Todas as peças seriam importantes para que o mecanismo funcionasse. Um simples parafuso fora do lugar poderia causar o caos.

Essa ideia dos gregos antigos é pertinente para a experiência pessoal que vou narrar.

Infelizmente, em nossa sociedade, há a crença, próxima da imbecilidade, que acredita que um juiz de direito teria mais valor do que um coletor de lixo.

Há diferenças no papel de cada um, é óbvio. Contudo essas diferenças não são absolutas, mas relativas. Pense numa cidade como São Paulo com o lixo acumulado nas ruas por trinta dias!

Creio que essa situação imaginada faria com que muita gente mudasse de opinião sobre o papel e o valor intrínseco de cada atividade.

Vamos à minha experiência...

Eu tinha 15 anos quando ouvi, pela primeira vez, uma canção dos Beatles. Gostei tanto daquele ritmo e das canções que acabei me fanatizando.[23]

Esse gosto exagerado me levava à fantasia de estar tocando em cantando com eles como se fosse um integrante daquele grupo. Ao surgir a oportunidade, comprei um violão. Como não sabia inglês, minha mãe – tadinha – tinha de ouvir aquela gemedeira o tempo todo ecoando pela casa. Afastei-me de colegas que não gostavam daquele tipo de música. Minha vida tornou-se monocromática.[24] Vestia roupas parecidas com aquelas em que os Beatles se apresentavam. Deixei os cabelos crescerem. (naquele tempo ainda tinha abundância de pelos na cabeça).

Passados alguns anos, como no pensamento grego antigo, os deuses me mandaram de volta para o meu próprio lugar...

A maneira como isso ocorreu foi escancarada, não menos dolorosa; diria brutal. Primeiro, foram os cabelos que começaram a cair por força da genética que não se importa nem um tiquinho pelos nossos valores. Lembrei de Millôr Fernandes:

o homem o cabelo parte; parte o cabelo com arte; até que o cabelo parte.

Depois, percebi que os Beatles eram muito famosos; eu no mais absoluto anonimato. Os Beatles eram talentosos; eu sabia 2 ou 3 acordes, quando muito. Não conseguia sair daquele ramerrão. Os Beatles eram ricos; eu muito pobre. Por tudo isso, minha estupidez ainda resistia, e tive de passar por mais um vexame:

As meninas corriam atrás dos Beatles; no meu caso, elas corriam de mim.

Aprendi, aos trancos e barrancos que, ao nos deslocarmos, de forma forçada e artificial do lugar a que pertencemos, movidos pela vaidade e não como forma genuína de liberdade e de direito, cedo ou tarde, a vida se encarrega de nos devolver ao nosso próprio lugar com violência e sofrimento.

(Vamos dar mais uma “volta no parafuso”[25] dessa imersão)

O APEGO

Toda aquela indisposição sentida, depois da frustração com os Beatles, vinha do medo de ser “ninguém”. Então, passei a ler doutrina espírita com ímpeto de me tornar “um grande espírita”. Afinal, eu queria ser “alguém” movido pela insidiosa vaidade.

Acumulei uma biblioteca de mais de 2.500 volumes. Eu tinha até O Livro dos Espíritos em inglês mesmo sabendo sofrivelmente o verbo to be, e uma frase do tipo the pen is on the table, da língua de Shakespeare. Veja só o tamanho da tolice!

Foi numa tarde em que eu estava me gabando da minha biblioteca, quando ouvi um anjo mau me dizer ao pé do ouvido: “muito livro, pouca prática”. 

Não preciso dizer que aquilo feriu de morte o meu orgulho. Tentei esquecer aquela voz infernal sem sucesso. A frase reverberava na minha cabeça.

O que fiz?

Vendi quase todo o meu acervo de livros. Evoquei a entidade perversa e disse-lhe: agora estamos quites, porque equilibrei a equação: tenho poucos livros para pouca prática.

(risos).

O apego é fonte de sofrimento.

Essa imersão no tema sofrimento me fez lembrar minha mãe, que dizia: “toda vez que estiver desesperado, recorra ao evangelho.”

Foi o que fiz.

Olhos atentos, coração batendo, procurei o capítulo 5 de O Evangelho Segundo o Espiritismo de Allan Kardec que se propunha a explicar o porquê de nosso sofrimento na Terra ao mesmo tempo que trazia consolação aos corações sofridos.

E lá fui eu...

Ao ler a frase do Cristo Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados, algo bateu meio torto em mim. E por que bateu torto? Porque me veio a lembrança das aulas do professor Damaso Viegas Nóbrega ensinando os seus alunos a compreenderem as camadas de um texto.

Explico minha estranheza:

Número um: a frase diz que os aflitos serão consolados. O que me incomodou foi o tempo do verbo. Ele está no futuro. Ora se estou com uma dor aguda provocada por uma cólica renal, por exemplo, como poderei esperar que, no futuro, eu serei bem-aventurado? É relevante dizer que a expressão “bem-aventurado” não é uma condição de felicidade qualquer, mas é a de muito feliz. 

Número dois: depois observei que aqueles aflitos, além de terem de esperar, eles serão consolados. 

Eu já disse em outra ocasião que consolação não é solução. No exemplo dado acima, um poderoso analgésico vai me consolar da dor aguda, intensa que sinto na cólica renal, mas não resolverá a causa da dor.

Então, pensei: e agora, o que faço?

Será que minha mãe estava errada? Será que o Cristo pregou uma peça nos aflitos?

Qual seria sua real proposta, afinal?

Para responder a essas questões juntei algumas notas e depois as costurei para resolver o meu dilema:

Primeira nota

No livro Vida Ética – uma coleção de ensaios do filósofo Piter Singer, o autor conta uma história fictícia de Bob, um cidadão que está próximo de aposentar.

Bob, ao longo dos anos, acumulara uma pequena fortuna para o futuro. Bob tinha um sonho de consumo: ter um Bugatti – carro superesportivo caríssimo.

Pensou Bob: aposento, pego minha poupança, invisto na compra de um Bugatti. Passeio algum tempo com ele, desfruto-o e realizo meu sonho; depois, o revendo e recomponho meu caixa. Vida que segue.

Dito e feito.

Certo dia, Bob estaciona o seu Bugatti num desvio de linha ferroviária onde sabia não ter perigo algum pois tratava-se de linha morta. Clima ameno, vento suave no rosto, olhos fixados naquele carro reluzente.

Entretanto, Bob avista uma criança brincando distraidamente na linha viva e um trem vindo em alta velocidade.

Instala-se um dilema para Bob: ele pode acionar a alavanca que desviaria o trem para a linha morta salvando a criança com o custo de destruir sua Bugatti   e a poupança de toda a sua vida, ou deixar a criança morrer   e salvar o carro.

O que ele fez?

Sem ter muito tempo para pensar, Bob decide deixar a criança morrer.

Segunda nota

Saímos de uma terrível história fictícia onde Peter Singer vai explorar essa historinha argumentando sobre uma possível solução para a fome no mundo, para uma história real.

Aconteceu no final dos anos 80, na cidade de Franca, SP, num centro espírita que frequentava. Foi um amigo, diretor daquela casa, que me contou esse episódio.

Como todo clássico centro espírita, havia um grupo de jovens que estudava doutrina, comumente chamado de Mocidade Espírita.

Esse grupo de jovens costumava, todo mês, montar uma cesta de alimentos bem grande e levar no bairro Aeroporto 3 onde aquele centro costumava manter um trabalho social.

Após montada a cesta, o grupo retirou uma ficha do cadastro das famílias assistidas e rumou para o endereço indicado no registro. A certeza de encontrar alguém realmente necessitado era muito alta, porque o centro costumava fazer sindicância para ver as reais condições das famílias e dosar aquilo que era mais necessário para cada uma delas.

Chegando lá, o grupo foi atendido por uma senhora que, para espanto de todos, pediu para que levassem a cesta para o vizinho cujo estado de saúde era grave e que as condições materiais eram péssimas.

Apesar do espanto daquele gesto, os jovens constataram que, de fato, a família vizinha vivenciava uma situação-limite.

Terceira nota

Esse argumento busquei na Física; Existe na física uma área chamada Cinemática na qual estuda-se o movimento dos corpos. Na Cinemática aprende-se que só podemos considerar um corpo em movimento se tivermos um referencial. Se, por acaso, eu estiver em movimento, mas o referencial estiver fixado em mim, então, para a Física, eu estaria em repouso.

Mas se eu estiver caminhando e o referencial estiver fora do meu corpo, para esse referencial eu estaria em movimento.

Imagine-se dentro de um trem com uma caneta no bolso e tem uma pessoa fora do trem.

Se o referencial é a caneta, você estará em repouso. Não haverá movimento entre você e a caneta fixada no seu bolso, mesmo que o trem esteja se locomovendo a 400 Km por hora.

Se o referencial estiver na pessoa fora do trem, então você estará em movimento.

Quarta nota

Ao final da Divina Comédia – obra monumental em versos decassilábicos, o poeta florentino Dante Alighieri escreve:

qual roda que ao motor pronta obedece, volvia o Amor que move o Sol e as estrelas.

Para Dante o Amor é uma potência que move o Universo.

Perceba que Dante convida-nos a pensar que a vida é movimento e que o motor da vida é o Amor. Sem Amor não haverá movimento e, portanto, não haverá vida.

Concluindo:

Na primeira nota, Bob preferiu fincar o referencial em si mesmo e em seus interesses, portanto não havia movimento dentro dele; não havia Amor; não havia vida. Bob, naquele instante, era um morto-vivo.

Na segunda nota, a mulher do Aeroporto 3, mesmo precisando da cesta básica, preferiu cedê-la ao vizinho num gesto que deixava claro que ela  fincara o referencial numa outra pessoa tão ou mais necessitada do que ela. Portanto, havia movimento em seu coração; havia vida. A potência do amor que a impulsionava podia mover o Sol e as estrelas.

Foi cruzando essas notas, é que pude entender a frase do Cristo, em suas camadas mais profundas, e descobrir que a chave para entender aquela estranha frase do Mestre estava na palavra AFLITOS. No tipo de aflito que se é. 

Porque aquele que estiver aflito, focado em suas próprias dores, e não possuir a capacidade de ver e sentir a dor que há ao redor, segundo o Cristo, não será bem-aventurado NUNCA.

Contudo, se aquele que estiver sofrendo, e mesmo assim, possuir a capacidade de ver e sentir a dor ao redor, saindo de si, em busca da dor do outro, certamente estará a caminho da bem-aventurança, e será consolado.

E veja bem: essa alegria que é prometida a quem ama não garante a cessação do sofrimento, mas é garantia de consolação, como um remédio eficaz contra o desespero e o ódio.

A atitude de um aflito, como aquela mulher, é livre de qualquer segunda intenção.

Não há neste tipo de aflito, um desejo de investimento numa suposta recompensa. Ele age de forma natural e genuinamente altruística[26].

Veja o que diz Ubiratan Rosa sobre a criatura virtuosa, em palestra proferida, nos anos 70, nas dependências do Centro Espírita Bezerra de Menezes, no bairro da Penha, cidade de São Paulo:

A criatura virtuosa tem problemas, é claro, vivencia uma série de problemas decorrentes da vida em sociedade, mas permanece inalterada. Não raro sofre, porque está muito sensibilizada; sofre, pela compaixão que tem dos outros, a começar por seus próprios familiares; sofre por benignidade, por magnanimidade, pelo alto senso de solidariedade e comunhão humana que desenvolveu no próprio coração.

(destaque meu)

Nota: Há momentos em que me pergunto se essa tentativa de me tornar escritor não seria um outro deslocamento que faço para compensar as frustrações em não ter sido um dos Beatles e nem ter me tornado um espírita importante.

Uma forma de cobrir com as cinzas dessas frustrações a vaidade que habita minha alma desde sempre. Acho esse exercício necessário e serve como antídoto contra futuras investidas do meu eguinho inflado e certamente me livrará de mais sofrimentos.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Perispírito seria um “corpo” de composição “semimaterial” – termo utilizado por Kardec - com o qual o espírito se liga à matéria. À época nem se cogitava pensar na física de partículas. Temos de lembrar que somente em 1897 J.J. Thomson descobriu a eletrosfera; portanto, 40 anos depois do lançamento de O Livro dos Espíritos.

[2] Essa constatação de Buda pode ter levado o filósofo franco-romeno Emil Cioran a afirmar: Não é Deus, mas a Dor, quem desfruta das vantagens da ubiquidade. Silogismos da Amargura.

Ubiquidade: capacidade de estar em todos os lugares ao mesmo tempo.

[3] O iludido corre o risco de se desiludir e essa desilusão causa sofrimento, apesar de, na desilusão, o sujeito se liberta daquilo que o iludia.

[4] O Caminho Óctuplo ou os 8 passos são: Compreensão Correta, Aspiração Correta, Fala Correta, A Ação Correta, O Meio de Vida Correto, o Esforço Correto, a Atenção Correta e a Concentração Correta.

De novo, é importante que se aprofunde no estudo do Budismo para entender essa abordagem proposta por Buda.

Por outro lado, as 4 nobres verdades serão verdades dependendo da perspectiva com a qual eu olho o mundo e a mim mesmo. Um Buda[4] encarnado enfrentará os mesmos e diversos problemas que eu enfrento. O que muda é a forma como Buda encara esses percalços e a forma como eu os encaro. A realidade é a mesma para mim e para o Buda encarnado, mas as visões e as posturas diante delas são diferentes.

Acho eu que um estudo aprofundado da psicologia por trás do Caminho Óctuplo poderá revelar nuances que não seria possível analisar nesse espaço.

Por fim, é importante salientar:  1) que “verdade” deve ser entendida como uma evidência inegável de um fato. 2) “nobre” é o que caracteriza excelência. Não tem nada a ver com posição social.

[5] É preciso salientar que há uma diferença entre simpatia e empatia: na simpatia unimo-nos com aquilo que simpatizamos. Já na empatia a ligação emocional é mais profunda, porque sentimos com o outro.

[6] Sidarta Gautama – príncipe nascido no que hoje é o Nepal, no ano de 563 a.C. é considerado o fundador do Budismo. Como existiram outros budas ao longo da História, Sidarta é chamado de buda original.

[7] Quando falo em “forçamento” estou me referindo às fórmulas que tentam escamotear a realidade pelo autoengano – na linguagem budista, pela ilusão. O resultado dessa manobra pode provocar aquilo que, em Psicanálise, é chamado de recalque. No futuro, instintos, emoções, aspirações reprimidas brotarão na forma de ressentimento, no ódio, na miséria moral.

[8] Otto Rank (1884-1939) foi psicanalista, professor, escritor austríaco. Inicialmente, fez parte do grupo mais próximo de Freud.

[9] Área psi abrange profissionais que lidam com saúde mental: na Psiquiatria, na Psicanálise, na Psicologia.

[10] O velho Confúcio - já dizia: saiba bem viver e bem saberás morrer.

[11] Sugiro, para aprofundamento do tema, a leitura de A velhice obra de Simone de Beauvoir. Acompanhar o trabalho do Dr. Alexandre Kalache também seria interessante.

[12] Vergonha alheia: é o ato de sentir vergonha daquilo que outra pessoa faz ou fala; uma espécie de constrangimento pela conduta do outro.

[13] https://www.worldometers.info/pt/

[14] No CID11 já constam mais de 55 mil doenças catalogadas!

[15] Utilizo o termo “persona” sob a ótica da teoria junguiana.

[16] Para o grande escritor Rubem Alves, saudade é a presença da ausência.

[18] Segundo a lenda, enquanto o casal humano original não comesse do fruto proibido da árvore da sabedoria, ele não teria consciência da finitude. Ao ser expulso, aquele par descobriu que era mortal e, a partir daí, dá-se início à angústia ontológica provocada por aquela noção com a qual todo ser humano se debate indefinidamente.

No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás. Gênesis 3:19

[19] Contingência: fato imprevisível ou fortuito que escapa ao controle.

[20] Montaigne, Ensaios, 3v. tradução, prefácio e notas por Sérgio Milliet, Porto Alegre, Editora Globo, 1962. (o destaque é meu).

[21] Mal secreto, Raimundo Correa juiz e poeta maranhense (1859-1911).

Vale observar que a última estrofe Quanta gente que ri, talvez existe, /
Cuja ventura única consiste/Em parecer aos outros venturosa!
é de uma atualidade espantosa.

[22] Cosmos: em grego a palavra significa “ordem”. Seu oposto é “Caos” que em grego significa desordem.

[23] Classifico como fanatismo minha admiração pelos Beatles porque tornou-se obsessão ouvi-los e imitá-los. O fanatismo caracteriza-se por um comportamento alienante.

[24] O monocromatismo é a condição em que se tem uma só cor; por extensão, uma vida monocromática seria uma vida cinza, repetitiva, sem nuances, muito tediosa.

[25] "A Volta do Parafuso", Significa um grau de pressão ou crueldade empregadas numa situação já difícil de suportar.

Essa expressão vem do título de uma novela de terror escrita por Henry James (1843-1916).

[26] O altruísmo caracteriza-se pelo amor desinteressado ao próximo.


 



Comentários

  1. Texto muito bom, me identifiquei em várias partes. Parabéns!

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  2. Meu ego nunca foi tão desafiado como nos últimos anos. É muito difícil manter a inocência, a serenidade e a confiança na humanidade quanto mais vemos e entendemos a realidade nossa e do nosso entorno.

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  3. Talvez, na prática, militância e fanatismo estejam bem próximos. Talvez sejam alternativas para usarmos de referências externas, como formas de distração e assim fugirmos dos nossos direitos e deveres íntimos, do autoconhecimento, da prática, do autoteste em nossas vidas. Militância e fanatismo podem ser posturas tanto para defender como para atacar uma causa ou conceito, uma forma preguiçosa de se posicionar nos extremos, e não investir "no caminho do meio", sob o conceito aqui apresentado.

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  4. O comentário acima deveria ser no blog sobre Militância Espírita. Desculpe-me a inabilidade tecnológica no celular.

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  5. Um tema propício à realidade dos habitantes planetários, nos planos físico e extra-físico.

    Realizou vasta pesquisa com vertentes analíticas segundo a psicologia, a medicina, o budismo (muito interessante!), a filosofia, o espiritismo e a literatura. Frutífero alimento à alma!

    A descrição da sua fase beatlemania destacou-se como amostra do assunto como também recordação alusiva às nossas ilusões juvenis.

    Igualmente, risos e seriedade conjuntos na sua escapatória diante da sinuca (muita) teoria e (pouca) prática!!

    Aprecio este bom humor!!

    Devem ter sido palestras incomparáveis. Bem-aventurados os que o ouviram!!

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Depois da espanhola [1] e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão. A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia. Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 13/04/2020 Por mais hedionda seja a figura de Joseph Goebbels [2] recentemente foi elevada ao status de máxima da sabedoria sua frase: “uma mentira contada muitas vezes acaba se tornando uma verdade”. É óbvio que se trata de uma armadilha, de um sofisma. No entanto, é plausível que se pense no poder dessa frase considerando como uma verdade baseando-se na receptividade do senso comum,   independentemente de cairmos no paradoxo de Eubulides ou de Epimênides [3] . H

O INFERNO E A QUARENTENA

Há uma peça para teatro escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre intitulada “Huis Clos” mais conhecida entre nós pelo título “Entre Quatro Paredes” onde Sartre explora, entre outros, o tema da liberdade – tema tão caro ao pensamento desse filósofo. A peça é encenada em um apartamento que simboliza o Inferno onde três personagens interagem com a figura de um quarto – o criado. Não interessa aqui explorar a peça em todas as suas complexidades, mas de chamar a atenção para a fala do personagem Garcin que, ao fim da peça, exclama: “o Inferno são os outros”. Há quem diga – gente com repertório imensamente maior do que o meu -, que devemos entender que “os outros” não são o inferno, mas nós é que somos o inferno. [1] Esse tema traz muitas inquietações àqueles que pensam a vida de forma orgânica, não simplista. Meu palpite é que a frase de Garcin confirma para mim o que desconfio: que os outros são o inferno, porque o outro, a quem não posso me furtar da companh

PAUSA PARA OUVIR - Chopin 2

Frédéric François Chopin 01/03/1810 - 17/10/1849 Piano Concerto No.1, Movimento 2 - Largo, Romance

Tempus Fugit - Rubem Alves

O que me motivou a homenagear o "Seu" Ary imediatamente à sua morte, deve ter sido inspirado no texto que segue abaixo somado à gratidão guardada vivamente em minha alma. Não sei, mas posso ser punido por publicar crônica de autoria de Rubem Alves Tempus Fugit , Editora Paulus, 1990, mas valerá o risco. TEMPUS FUGIT Rubem Alves Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas. De dia, tudo era luminoso, mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar e suas mús

A REDENÇÃO PELO SANGUE DE UM CAVALO

No último texto postado falei do “sangue de barata”. Desta vez, ofereço-lhes um texto o qual tive contato pelo meu filho Jonas no fim dos anos 90. A autoria é de Marco Frenette. Nele, Frenette fala do poder do sangue de um cavalo. Nota: o tamanho do texto foge do critério utilizado por mim neste espaço que é o de textos curtos para não cansar   a beleza de ninguém. CAVALOS E HOMENS Marco Frenette Revista Caros Amigos, setembro 1999. Essa short cut cabocla está há tempos cristalizada na memória coletiva de minha família, e me foi contada pela minha avó materna. Corria o ano de 1929 quando ela se casou, no interior de São Paulo, com o homem que viria a ser meu avô. Casou-se contra a vontade dos pais, que queriam para a filha alguém com posses compatíveis as da família, e não um homem calado, pobre e solitário, que vivia num casebre ladeado por uns míseros metros quadrados de terra. Minha avó, porém, que era quase uma criança a época, fez valer a força de sua personal

A QUEIMA DO "EU"

Estimado Humberto, o feliz destaque "[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do "eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a "[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do "eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência" (Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador? Samuel Prezado irmão Samuel, obrigado pela sua companhia. É uma honra tê-lo aqui. Sem dúvida há uma relação entre Nietzsche e

PAUSA PARA OUVIR - Rameau

Jean-Philippe Rameau 25/09/1683-12/09/1764 https://www.youtube.com/watch?v=fbd5OAAN64Y

BUSCA

Somos humanos, demasiadamente humanos [1] e nossa humanidade baseia-se na linguagem. Isso é evidente. Qualquer tipo de busca, por exemplo a “humildade”, está fadado à frustração. A busca pressupõe algo vindo da razão e esta tenta criar conceitos em tudo o que busca. A razão utiliza o artifício da comparação e os afetos não funcionam assim. Toda vez que me comparo com alguém, na verdade estou comparando algo que conheço pouco – eu mesmo, com algo que não conheço nada – o outro. Mas o conceito vem carregado de cultura, e a cultura é produto da linguagem, e a palavra é o tijolo da construção conceitual, nunca a coisa em si. Enquanto a razão busca a palavra “humildade” que é intenção, a vivência é o gesto. E sabemos, segundo Rui Guerra: há distância entre ambos. [2] . Enquanto a vida é vertiginosamente dinâmica – tudo que é agora, não será o mesmo no segundo seguinte, a palavra é a tentativa de manter-se aquilo que escapa por entre os dedos; é a esperança angustiada de eternizar-s