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MILITÂNCIA DO BEM

Não é possível pensar a sociedade sem a política.

Digo isso, porque, desde menino, enquanto transitava pelos encontros em centros espíritas, sempre ouvia que “não se podia discutir política dentro de suas dependências". Cresci com a ideia de que, falar de política nos grupos de estudo da doutrina deveria ser tratado como tabu[1].

Com o tempo descobri, com o velho Aristóteles[2], que o ser humano é um animal político, ou seja, fazer política está em seu DNA[3]; é da natureza humana e, portanto, não dá para escapar.

Além de Aristóteles, percebi que, se no Livro dos Espíritos, há um capítulo inteiro sobre “Lei de Sociedade”[4] – e que ela é considerada por Kardec como “Lei Divina” não é possível estudar essa lei sem considerar a Política como elemento fundamental do contrato social e da própria vida.

Mesmo assim, os fariseus de plantão continuam erguendo muros dentro das casas espíritas, para os que querem discutir a Lei de Sociedade e tudo que a envolve não só pela chave moral.

Esses tontos pensam que falar sobre Política é doutrinar as pessoas no espectro da política partidária.

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Onde quero chegar?

Há uma guerra acontecendo dentro e fora da política brasileira. Isso é o óbvio ululante.[5]

Nosso oráculo não está mais em Delfos[6]. O ZAP é nossa pitonisa[7].

Foi do WhatsApp que recebi uma paródia acerca de um certo juiz brasileiro que de herói passou a vilão na boca de uma parcela do público. A mão que afaga é a mesma que apedreja como dizia o poeta Augusto dos Anjos.

A militância de ambos os lados da polarização divulgam vídeos, fazem musiquinhas, paródias, difamando os seus opositores com apelidos, xingamentos, caricaturas. Fazem de tudo para sujar a reputação de seus alvos e, se possível, da família inteira - método olavista[8] de ser aplicado por ambos os lados.

Aquele danado (o Olavo) conseguiu capturar o zeitgeist[9] dessa gente toda – inclusive daqueles que não acreditam em terra plana e que acham que podem fazer contato com extraterrestres pondo celulares no cocuruto[10].

Com a propagação de ideias com as quais os militantes de extrema direita utilizaram para desmoralizar as instituições democráticas - que, convenhamos, gozam de uma imagem algo exagerada de "impolutas" e perfeitas - o uso dessas instâncias para punir eventuais crimes virou discurso vazio. O que vale é o soco no estômago do adversário. Quando não de fato, pelos menos pela retórica do ódio.

Neste campo, não importa se se é de esquerda ou direita, de extrema ou não. Neste campo de batalha cheio de sombras, todos os gatos são pardos[11].

O que ganha a Política com pê maiúsculo nessa zona de conflito na qual o debate deveria ser civilizado. maduro? O que ganha a sociedade com essa guerra ideológica? O que ganham os nossos filhos e netos?

A resposta é simples: além do ódio que se espalha como fogo em palha seca, a nutrição da guerra. E guerra não só lembra, mas efetiva o gosto de suor, sangue e lágrimas na boca de quem quer viver uma vida um pouco mais decente e ordeira, menos conflituosa, mais focada nas dificuldades intrínsecas da existência.

Nessa estranha lógica o outro é o inferno[12] e o foco é eliminá-lo, senão com balas, facas e pauladas, com palavras e gestos de depreciação.

É um contrassenso assistir gente do meio espírita fazendo militância emulando olavos raivosos e ressentidos espalhando memes e paródias nas redes sociais. É uma baixaria “do bem”.

E não estou dizendo que os “religiosos” devam continuar fazendo o que fazem muito bem: caras e bocas de bonzinhos. Não. O fingimento tem prazo de validade. Cedo ou tarde será desmascarado e a decepção decorrente tende a provocar a potencialização do ódio, da rinha, da pulsão de morte.

Ou o nível de nossas disputas ideológicas sobe para um patamar civilizado, ou viveremos para ver a autofagia antropológica da espécie (redundância proposital). Porque “evoluímos” como dizem os ingênuos. Agora não são arcos e flechas e tacapes; agora temos coisa melhor. Temos drones carregando antraz e plutônio para satisfazer e despertar o sociopata que dorme nas dobras de nossa alma.[13]

E, se nessa guerra houver algum vencedor, ele terá batatas como prêmio[14].

Como foi bom ter refletido com João Cezar de Castro Rocha em seu Guerra Cultural e Retórica do Ódio!

Indico essa leitura a todos aqueles que fazem “evangelho no lar” para cumprir um ritual típico de uma espiritualidade gourmet e burocrática – os túmulos caiados a que Jesus se referiu - e aos militantes espalhados por aí com sua baba amarelo-esverdeada[15] cuspindo ódio e violência.

O que causa estranheza é que a maioria desses militantes se dizem “do bem”.

Se estamos envolvidos nesse conflito e não conseguimos - de todo ou em parte – nos livrar desses afetos tristes, pelo menos que isto sirva como reflexão.

Difícil? Quem disse que seria fácil?

Obrigado por estar aqui. Críticas, correções serão bem-vindas.


[1]Tabu: o dicionário indica diversos sinônimos para essa palavra. Aqui assume o sentido de proibido; vedado; censurado.

[2] Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) filósofo da antiga Grécia. Um dos mais importantes filósofos da história da Filosofia.

[3] DNA é um composto orgânico que contém as informações para transmissão e manutenção da vida. Quando se diz “está no DNA de fulano” fala-se de suas características fundamentais.

[4] Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, Parte Terceira, Capítulo VII.

[5] Óbvio ululante: expressão criada pelo jornalista, escritor brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980) e significa algo que não precisa de explicações dada a clareza com que se apresenta.

[6] Oráculo: é a resposta dada por um deus, um espírito, normalmente de caráter adivinhatório. Oráculo de Delfos era o mais famoso ao tempo de Sócrates. Ficava dentro do templo do deus Apolo, na cidade grega de Delfos.

[7] Pitonisa: sacerdotisa do templo de Apolo que fazia previsões pela consulta aos deuses.

[8] Referência a Olavo de Carvalho (1947-2022). ensaísta e polemista brasileiro. Tornou-se importante na política ao se tornar uma espécie de guru da nova extrema direita brasileira. Minha citação no texto refere-se ao seu modo altamente agressivo de operar.

[9] Zeitgeist: em alemão significa “espírito da época” ou “sinal dos tempos”.

[10] Cocuruto: o alto da cabeça.

[11] A expressão significa que, na penumbra é difícil distinguir as coisas com clareza.

[12]Tomo emprestada a expressão de Jean Paul Sartre na peça “Entre Quatro Paredes” em que a convivência entre pessoas num espaço reduzido e por longo tempo se torna infernal.

[13] Referência à banalidade do mal de Hannah Arendt.

[14] Expressão retirada do romance de Machado de Assis – Quincas Borba e que é o prêmio dado aos mais fortes.

[15] A cor da baba refere-se à bile produzida pelo fígado.

Comentários

  1. Haja paciência. Muita.

    Ao presenciar (leitura, escuta, diálogo) o indefensável, é necessário imenso autodomínio para não sucumbir ao desequilíbrio.

    Deixar de se posicionar e de exercer a cidadania equivale ao pensamento "infantil" de que a mudança virá de seres extracorpóreos.

    Somos nós que estamos no mundo a auxiliar as forças do Bem a transformar o mundo.

    Participemos ativamente nos espaços que nos sejam possíveis.

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