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CEGUEIRA


A Cegueira e Conversão de Paulo na estrada de Damasco
Caravaggio, 1601 

E aconteceu que chegando ele perto de Jericó, estava um cego assentado junto do caminho, mendigando.
E, ouvindo passar a multidão, perguntou que era aquilo.
E disseram-lhe que Jesus Nazareno passava.
Então clamou, dizendo: Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim.
E os que iam passando repreendiam-no para que se calasse; mas ele clamava ainda mais: Filho de Davi, tem misericórdia de mim!
Então Jesus, parando, mandou que lho trouxessem; e, chegando ele, perguntou-lhe,
Dizendo: Que queres que te faça? E ele disse: Senhor, que eu veja.
E Jesus lhe disse: Vê; a tua fé te salvou.

Lucas 18:35-42

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A princípio, a pergunta que Jesus faz ao cego Bartimeu parece absurda: o que queres que te faça?

Esse Alguém, que faz curas, não desconfiava nem um pouco da demanda daquele homem?

E o aparente absurdo segue: o cego grita para Alguém de passagem pela cidade e que está fazendo curas “milagrosas” para que o atendesse; seria para pedir o quê? Um donut[1]; um ingresso para a final da Libertadores[2]; um curso de japonês em braille[3]?

A meu ver, essa passagem possui uma estranha beleza que vai além da beleza estética daquele momento:

1)    Jesus ignora a multidão que impedia aquele pedinte de ser atendido. Provavelmente porque a multidão o considerava de pouca importância para o Mestre.

2)    Jesus respeita o velho cego com tanta profundidade que, apesar de saber de sua demanda imediata – curar-se da cegueira – lhe pergunta o que queria. Presumo que nem sempre um cego tem como prioridade voltar à condição de um vidente. Baseio-me em gente que, após ficarem cegos, conseguiram construir ideias as quais não teriam alcançado sem o impedimento físico da visão[4]. A vida é complexa; e o ser humano, idem.

Por outro lado, bons médicos, bons psicanalistas sabem ouvir as queixas de seus pacientes mesmo que sejam evidentes as circunstâncias: por trás da queixa principal, não raro, há sempre algo a mais e de grande importância para um diagnóstico mais amplo e certeiro. Jesus assim agira com o pobre cego.

Só depois de estabelecer um contato direto com aquela criatura sofrida, Jesus o atende, curando-o.

3)    Jesus se detém para atender Bartimeu, porque percebera que a fé daquele homem era operante – dada as dificuldades que se interpunham pelos obstáculos e as agressões vindas da multidão, não se deteve.

4)    O mais significativo é a vontade do cego em ver. Não era um olhar banal sobre as coisas. Muita gente, vidente, olha a vida com indiferença a tal ponto que metaforicamente são cegos. Creio eu, Bartimeu queria ver com todo o peso do significado do verbo. A força de sua fé o curou conforme aponta o texto evangélico.

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Aqui entra o que tenho repetido: é preciso aprender a ler as camadas de um texto para compreendê-lo melhor. Os evangelhos são textos profundamente ricos de significados, mas muitas vezes em linguagem simbólica ou até esotérica.[5]

Permita-me contar uma passagem de minha vida – quando frequentava cursinho pré-vestibular tive um professor que marcou minha vida de estudante. Chamava-se Damaso Viegas Nóbrega. Hoje, escrevo com uma gramática ruim não por culpa dele – um intelectual, mas por minha preguiça e dificuldade em compreender a gramática da língua portuguesa.

Damaso costumava pregar peças em nós enquanto ensinava. Certa vez, propôs à classe que fizesse a análise da seguinte frase:

A brancarana buçalava o caborteiro.

Ao final, simplificadamente, concluímos o seguinte:

A frase contém um verbo. Toda frase que contém um verbo é, por definição, uma oração. Logo, a frase proposta pelo professor era uma oração. Sendo uma oração terá outros elementos a serem analisados.

Buçalava: é o verbo do modo Indicativo; pretérito imperfeito da terceira pessoa do singular.

A brancarana: sujeito da oração – porque é quem move a ação de buçalar.

O caborteiro: é o objeto direto do verbo buçalar que, portanto, deve ser verbo transitivo direto.

Então, sem saber o que a frase queria dizer fomos capazes de fazer sua análise (aqui, bem resumida para não aporrinhar quem me lê).

E daí, aonde você quer chegar com isso? – perguntará alguém curioso e, quem sabe, entediado.

- Que, muitas vezes, lemos um texto sem entender bulhufas do que significa e ficamos com a superfície do texto sem querer aprofundar no seu entendimento. Temos orgulho de demonstrar grande talento técnico, mas compreensão rasa em lidar com a vida. 

(Vale salientar que uma coisa não elimina a outra, ambas - técnica e sensibilidade - podem transformar o mundo. Uma crítica rasa pode revelar inveja e ressentimento).

É o que a maioria das pessoas faz; eu, inclusive. Muitas vezes, por preguiça de procurar nos dicionários ou em compêndios sobre o assunto. Passamos por cima de detalhes que ajudariam a entender melhor a proposta do autor do texto, do objeto de arte, da peça de teatro, da música que ouvimos.

E é aí que entra a lição do professor Damaso: é muito bom saber a norma culta da língua, mas não menos importante é entender o que se lê. E quanto mais agudo for o olhar sobre o objeto de estudo, mais conteúdo será acumulado para compreensão do mundo ou, em última análise, saber o tamanho da ignorância que se carrega a respeito dele – o mundo.[6] Ordinariamente, somos cegos a dirigirem cegos ou, então, dirigidos por eles.

Quem tem visão aguda do mundo indaga mais do que afirma. Quase não utiliza a palavra “verdade” e desconfia sempre de suas convicções. Com isso, desenvolve, naturalmente, uma habilidade em ouvir os outros – como fez o Cristo com o cego de Jericó; de amá-los sem exigências descabidas próprias daqueles que se acham os reis e patronos da verdade última. É mais tolerante e, por isso, Deus habita o seu coração.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Donut: rosca ou rosquinha é um pequeno bolo em forma de rosca, popular nos Estados Unidos e de origem incerta. Consiste numa massa açucarada frita, que pode ser coberta com diversos tipos de cobertura doce e colorida.

[2] A Copa Libertadores da América ou Taça Libertadores da América, oficialmente CONMEBOL Libertadores, é a principal competição de futebol entre clubes profissionais da América do Sul, organizada pela Confederação Sul-Americana de Futebol desde 1960.

[3] Braille: sistema de escrita com pontos em relevo que as pessoas privadas da visão podem ler pelo tato e que lhes permite também escrever; anagliptografia.

No texto faço referência à canção “Se...” de Djavan. Sei lá o que te dá, não quer meu calor/São Jorge, por favor, me empresta o dragão/Mais fácil aprender japonês em braille/Do que você decidir se dá ou não. (entendo o verbo empregado “dar” como “dar amor”).

[4] Veja o caso de Jorge Luís Borges (1899-1986) – escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.

[5] Esotérico é uma palavra vinda do grego. Com “s” significa “aquilo que está escondido, oculto; já a palavra “exotérico” com “x” refere-se àquilo que está exposto, evidente, claro, revelado.

[6] Para os curiosos: Brancarana é alguém de pele morena. Buçal: arreio que vai do pescoço à cabeça do cavalo. Caborteiro: cavalo arisco.

Comentários

  1. Do Caravaggio ao Damaso (quase) nem pisquei ao ler. Primorosos detalhes. Ainda bem que colocou a tradução do (in)decifrável!! rsrs Gratidão, no geral, pela lição!

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