
E aconteceu que
chegando ele perto de Jericó, estava um cego assentado junto do caminho,
mendigando.
E, ouvindo passar a multidão, perguntou que era aquilo.
E disseram-lhe que Jesus Nazareno passava.
Então clamou, dizendo: Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim.
E os que iam passando repreendiam-no para que se calasse; mas ele clamava ainda
mais: Filho de Davi, tem misericórdia de mim!
Então Jesus, parando, mandou que lho trouxessem; e, chegando ele,
perguntou-lhe,
Dizendo: Que queres que te faça? E ele disse: Senhor, que eu veja.
E Jesus lhe disse: Vê; a tua fé te salvou.
Lucas 18:35-42
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A
princípio, a pergunta que Jesus faz ao cego Bartimeu parece absurda: o que
queres que te faça?
Esse
Alguém, que faz curas, não desconfiava nem um pouco da demanda daquele homem?
E
o aparente absurdo segue: o cego grita para Alguém de passagem pela cidade e que
está fazendo curas “milagrosas” para que o atendesse; seria para pedir o quê?
Um donut[1];
um ingresso para a final da Libertadores[2];
um curso de japonês em braille[3]?
A
meu ver, essa passagem possui uma estranha beleza que vai além da beleza
estética daquele momento:
1)
Jesus ignora a
multidão que impedia aquele pedinte de ser atendido. Provavelmente porque a
multidão o considerava de pouca importância para o Mestre.
2)
Jesus respeita o
velho cego com tanta profundidade que, apesar de saber de sua demanda imediata –
curar-se da cegueira – lhe pergunta o que queria. Presumo que nem sempre um
cego tem como prioridade voltar à condição de um vidente. Baseio-me em gente que,
após ficarem cegos, conseguiram construir ideias as quais não teriam alcançado
sem o impedimento físico da visão[4]. A
vida é complexa; e o ser humano, idem.
Por outro lado, bons médicos, bons
psicanalistas sabem ouvir as queixas de seus pacientes mesmo que sejam
evidentes as circunstâncias: por trás da queixa principal, não raro, há sempre algo a mais e de grande importância para um diagnóstico mais amplo e certeiro. Jesus assim agira com o pobre cego.
Só depois de estabelecer um contato direto com
aquela criatura sofrida, Jesus o atende, curando-o.
3)
Jesus se detém
para atender Bartimeu, porque percebera que a fé daquele homem era operante –
dada as dificuldades que se interpunham pelos obstáculos e as agressões vindas
da multidão, não se deteve.
4)
O mais
significativo é a vontade do cego em ver. Não era um olhar banal sobre as coisas. Muita gente, vidente, olha a vida com
indiferença a tal ponto que metaforicamente são cegos. Creio eu, Bartimeu
queria ver com todo o peso do significado do verbo. A força de sua fé o curou
conforme aponta o texto evangélico.
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Aqui
entra o que tenho repetido: é preciso aprender a ler as camadas de um texto
para compreendê-lo melhor. Os evangelhos são textos profundamente ricos de
significados, mas muitas vezes em linguagem simbólica ou até esotérica.[5]
Permita-me
contar uma passagem de minha vida – quando frequentava cursinho pré-vestibular tive um professor que marcou minha vida de estudante. Chamava-se Damaso Viegas
Nóbrega. Hoje, escrevo com uma gramática ruim não por culpa dele – um intelectual,
mas por minha preguiça e dificuldade em compreender a gramática da língua portuguesa.
Damaso
costumava pregar peças em nós enquanto ensinava. Certa vez, propôs à classe que
fizesse a análise da seguinte frase:
A
brancarana buçalava o caborteiro.
Ao
final, simplificadamente, concluímos o seguinte:
A
frase contém um verbo. Toda frase que contém um verbo é, por definição, uma
oração. Logo, a frase proposta pelo professor era uma oração. Sendo uma oração terá
outros elementos a serem analisados.
Buçalava: é o verbo do modo Indicativo; pretérito
imperfeito da terceira pessoa do singular.
A
brancarana: sujeito da oração – porque é quem
move a ação de buçalar.
O
caborteiro: é o objeto direto do verbo buçalar
que, portanto, deve ser verbo transitivo direto.
Então,
sem saber o que a frase queria dizer fomos capazes de fazer sua análise (aqui,
bem resumida para não aporrinhar quem me lê).
E
daí, aonde você quer chegar com isso?
– perguntará alguém curioso e, quem sabe, entediado.
- Que, muitas vezes, lemos um texto sem entender bulhufas do que significa e ficamos com a superfície do texto sem querer aprofundar no seu entendimento. Temos orgulho de demonstrar grande talento técnico, mas compreensão rasa em lidar com a vida.
(Vale salientar que uma coisa não elimina a outra, ambas - técnica e sensibilidade - podem transformar o mundo. Uma crítica rasa pode revelar inveja e ressentimento).
É
o que a maioria das pessoas faz; eu, inclusive. Muitas vezes, por preguiça de
procurar nos dicionários ou em compêndios sobre o assunto. Passamos por cima de
detalhes que ajudariam a entender melhor a proposta do autor do texto, do
objeto de arte, da peça de teatro, da música que ouvimos.
E é aí que entra a lição do professor Damaso: é muito bom saber a norma culta da língua,
mas não menos importante é entender o que se lê. E quanto mais agudo for o
olhar sobre o objeto de estudo, mais conteúdo será acumulado para compreensão
do mundo ou, em última análise, saber o tamanho da ignorância que se carrega a respeito
dele – o mundo.[6]
Ordinariamente, somos cegos a dirigirem cegos ou, então, dirigidos por eles.
Quem
tem visão aguda do mundo indaga mais do que afirma. Quase não utiliza a palavra
“verdade” e desconfia sempre de suas convicções. Com isso, desenvolve,
naturalmente, uma habilidade em ouvir os outros – como fez o Cristo com o cego de Jericó; de amá-los sem exigências descabidas próprias daqueles que se
acham os reis e patronos da verdade última. É mais tolerante e, por isso, Deus
habita o seu coração.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1]
Donut: rosca ou rosquinha é
um pequeno bolo em forma de rosca, popular nos Estados Unidos e de origem
incerta. Consiste numa massa açucarada frita, que pode ser coberta com diversos
tipos de cobertura doce e colorida.
[2]
A Copa
Libertadores da América ou Taça Libertadores da América, oficialmente CONMEBOL
Libertadores, é a principal competição de futebol entre clubes profissionais da
América do Sul, organizada pela Confederação Sul-Americana de Futebol desde
1960.
[3] Braille: sistema
de escrita com pontos em relevo que as pessoas privadas da visão podem ler pelo
tato e que lhes permite também escrever; anagliptografia.
No texto faço referência à canção “Se...”
de Djavan. Sei lá o que te dá, não quer meu calor/São Jorge, por favor, me
empresta o dragão/Mais fácil aprender japonês em braille/Do que você decidir se
dá ou não. (entendo o verbo empregado “dar” como “dar amor”).
[4]
Veja o caso de Jorge
Luís Borges (1899-1986) – escritor, poeta, tradutor, crítico literário e
ensaísta argentino.
[5]
Esotérico é uma palavra vinda do
grego. Com “s” significa “aquilo que está escondido, oculto; já a palavra “exotérico”
com “x” refere-se àquilo que está exposto, evidente, claro, revelado.
[6]
Para os curiosos: Brancarana é alguém de pele morena. Buçal:
arreio que vai do pescoço à cabeça do cavalo. Caborteiro: cavalo arisco.
Do Caravaggio ao Damaso (quase) nem pisquei ao ler. Primorosos detalhes. Ainda bem que colocou a tradução do (in)decifrável!! rsrs Gratidão, no geral, pela lição!
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