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IMANENTE E TRANSCENDENTE

Arte: Tiago Spina

Não quero falar sobre definições profundas do que sejam imanente e transcendente. Deixo essa tarefa aos especialistas em descrevê-las e aos leitores interessados em procurar fontes para aprofundamento. Faço, portanto, uma leitura rasa.

Há quem queira aproveitar ao máximo as delícias desse mundo numa chave niilista na qual o hedonismo extremo funciona como pauta diária[1]. É um desprezo completo por questões transcendentais.

Por outro lado, há quem se projete, o tempo todo, nas questões espirituais desprezando “as coisas deste mundo” numa chave nitidamente alienante do mundo físico, do imanente.

Em ambos os grupos há uma busca pelo prazer. Só para dar um exemplo: de um lado temos Sade[2] e sua intenção de tornar a luxúria uma virtude; e de outro, Santa Teresa D´Ávila com seus êxtases místicos[3].

Nossa condição de espíritos encarnados, queiramos ou não, determina um constante e infernal dilema: desprezar o mundo físico ou o seu oposto.

Se entendêssemos a dinâmica natural da vida, sem justificativas ou condenações, o dilema desapareceria. É óbvio que, enquanto aqui estivermos, nossas preocupações deverão estar vinculadas às experiências deste mundo. Repare no que disse Jesus:

Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.  Mateus, 6:34

Que seria esse “mal” a que Jesus alude?

Ao dilema acima exposto, creio eu, porque nos desestabiliza e nos paralisa.

E esse “amanhã” referido por ele?

O “amanhã” do texto evangélico – não se preocupem com o amanhã – deve ser entendido como um futuro indeterminado. Pode ser daqui a alguns segundos, como pode ser daqui a um milhão de anos.

Quando Jesus utiliza o termo “o amanhã”, tendo a admitir que Jesus estava falando de um futuro depois da morte, ou seja, do mundo espiritual. Em outras palavras, Jesus pedia para que, enquanto encarnados, tivéssemos cuidado em tratar das coisas da Terra, porque depois da morte, como espíritos teremos outras preocupações para cuidar – pois o amanhã trará as suas próprias preocupações (sic).

Vou um pouco mais adiante com o meu raciocínio:

Enquanto aqui encarnados estivermos, o mundo espiritual representará o transcendente e o mundo físico – este em que estamos “engaiolados” – será o imanente.

Ao deixarmos o corpo físico pelo fenômeno da morte, a situação se inverte: lá tornar-se-á o imanente e aqui, o transcendente.

Complicou ou descomplicou?

Pensar nesse ziguezague dá vertigem, assim como a leitura do poema “Nascemorre”[4]:



Difícil? Quem disse que seria fácil?

[1] Hedonismo: aqui posto como dedicação ao prazer como estilo de vida.

[2] Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade (1740-1814) foi um nobre, filósofo, político francês.

[3] Freira carmelita, mística e santa católica do século XVI. Livro: Autobiografia de Santa Teresa D´Ávila. Ver escultura feita por Gian Lorenzo Bernini.

[4] Haroldo de Campos, 1958. Os contrastes são evidentes no poema, a começar pelas figuras triangulares invertidas, assim como a vida e a morte. A partícula “re” dá a ideia de repetição e a partícula “des” a ideia de retorno.

Comentários

  1. Querido Humberto, será que "[...] desprezar o mundo físico ou o seu oposto" se constitui em dilema mesmo? Quem se preocupa com este tipo de problema na sociedade? Fico pensando que quem navega em águas metafisicas não necessariamente despreza a vida material e o contrário é verdadeiro, então, pergunto de novo, há mesmo dilema aqui? Por meio tempo houve leituras de Platão como dualista e meu coorientador de doutorado em seu Eros e Tânatos (Almeida, 2007, p. 165) critica esta visão dicotômica de mundo. Abraços e obrigado!

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  2. Prezado Samuel, que alegria tê-lo aqui. Suas considerações são pertinentes. Li sua resenha do livro citado por você. Acho que um olhar mais agudo aponta para o desaparecimento desse dilema que, acho eu, existe em certos grupos de pessoas as quais, como todos nós, são atravessadas pelo desejo. Gostaria de ouvi-lo mais. Esteja à vontade. Obrigado. Abraço fraterno.

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  3. No próprio título demonstra a nossa condição existencial com a conjunção coordenativa aditiva: "e". Vivemos o transcendente E o imanente concomitantemente.

    Entendo que somos seres duais - Espíritos na matéria - cuja consciência sinaliza um grau de (des)interesse às questões mundanas e metafísicas.

    Um brinde à arte do Tiago Spina, à poesia do Haroldo de Campos e à filosofia desse blog.

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    1. Prezada professora Nilce, obrigado pelos apontamentos. Fico honrado com sua visita e atenção. Abraço

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