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CAVALOS E TURISTAS

CAVALOS E TURISTAS

(consequências de uma cultura especista antropocêntrica[1] na qual o ser humano seria a cereja posta pelas mãos do Criador no bolo da criação)

O ser humano sofre porque consegue prever certos eventos importantes de sua vida, por exemplo – e este é o maior deles – sabe que vai morrer.

Eu, como cavalo, não sei quando vou morrer e nem faço contas para me preparar para o fim da vida. A morte chega, entrego-me a ela com a inocência de um recém-nascido. Talvez, não sei, os humanos me invejem por isso.

Aliás, se houvesse a possibilidade de eu saber que iria morrer, seria um alívio e não um sofrimento, dada a vida que levo como um cavalo, desde minha adolescência, que puxa charretes cheias de turistas mascando chiclete e rindo ruidosamente e fazendo selfies pelas ruas da cidade onde vivo. O que ganho com isso? Ganho um pouco de capim e muito Sol escaldante no lombo enquanto meu dono refresca-se debaixo das árvores da praça esperando nova leva de turistas – sim, meu dono, sou tratado como objeto e não como um ser que sente, tem empatia e sofre.

Que mundo estranho esse dos humanos!

Quando usam meus semelhantes em filmes, que sofrem com as explosões, correrias loucas, e quedas espetaculares, mas os descartam depois das filmagens.

Há quem nos trate bem? Depende do que se entende por “tratamento benéfico”. Os meus semelhantes que servem de diversão em hipismo ou em hipódromos são cobertos por boa comida, boa cama e não lhes falta carinho e atenção, mas com um preço: eles devem servir de instrumentos para a diversão humana, mesmo que não estejam sentindo-se muito bem.

E se, por azar, quebrarmos uma perna em algum desses torneios, descartam-nos como se fôssemos uma pá, uma enxada ou outra ferramenta qualquer.

Liberdade de correr pelos campos e pradarias, brincar, copular são coisas de um passado pré-histórico. Sim, pré-histórico: aparecemos na Terra bem antes dos humanos, mas eles não levam isso em consideração. Maltratados, famintos, doentes somos descartados com a mesma indiferença que vegetais apodrecidos  em um mercado municipal.

Imagine você como era a vida de um cavalo no tempo das diligências! Dia e noite correndo debaixo de chicotadas, atingidos por tiros e flechadas!

Que eu saiba, somente Shakespeare imortalizou nossa espécie em sua peça Ricardo III onde o personagem principal, em meio a uma batalha, grita: “um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!”

Serve como consolação? Acho que não. É verdade que tem crescido o movimento de pessoas sensibilizadas com o sofrimento dos não-humanos, mas ainda é muito pouco perto do tamanho dos maus-tratos.

Há uma expressão (humana) que visa configurar uma vida ruim: “vida de cachorro”. Quem usa essa expressão não sabe o que é ser um cavalo que, a vida toda, só puxou charretes cheias de turistas barulhentos e comilões, enquanto muitos de nós caem, no meio da rua, suados, esgotados, mortos de tantos vai-e-vens pelas ruas de uma cidade turística qualquer.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] O especismo é uma forma de discriminação contra quem não pertence a uma determinada espécie. Similar ao racismo, o sexismo e outros tipos de preconceito, o especismo se utiliza de argumentos sem base científica ou moral para validar a exploração e subjugamento de uma espécie sobre outra.Fonte:  https://www.politize.com.br/especismo-e-antiespecismo/#:~:text=O%20especismo%20%C3%A9%20uma%20forma,de%20uma%20esp%C3%A9cie%20sobre%20outra.

Um dos argumentos do filósofo Peter Singer é que somos herdeiros da cultura judaico-cristã na qual os animais não-humanos são objetos a serviço do ser humano.

Há uma literatura robusta que trata desse assunto.

Sugiro a leitura de defesa de tese de mestrado na Universidade Federal da Paraíba, de Vinícius Laurindo dos Santos Pereira “Considerações sobre a ética animal de Peter Singer”, 2016,

Outra sugestão: ler texto “Redenção pelo sangue de um cavalo” que postei neste Blog:

https://espiritismosec21.blogspot.com/2020/04/a-redencao-pelo-sangue-de-um-cavalo.html

Comentários

  1. Nossos irmãos menores sofrem...

    Dentre vários documentários sobre a 'relação' do ser humano com os animais lembrei do recente "Comer vai nos levar à extinção".

    Vai demorar ainda um bom tempo para mudar o paradigma de (re)considerar o direito à vida livre e sem exploração de toda sorte de animais.

    Circos, zoológicos, parques temáticos, aquários (volumosos), entre outros, cerceam a natureza característica de qualquer espécie.

    Possa esse novo tempo de adoções de animais domésticos, como se fossem 'da família', se estender para os 'selvagens', e quem sabe assim libertá-los da ganância humana.

    Gostei da temática. Oportuna reflexão.

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