Nota preliminar: O que você vai ler abaixo nasceu da inquietação diante de certos discursos que, sob a aparência de sabedoria espiritual, operam como mecanismos de padronização subjetiva. Não se trata aqui de negar o valor das tradições espirituais, mas de alertar para um risco sempre presente: o da perda silenciosa da singularidade. Quando a fé se converte em obediência automática, e o pensamento próprio cede lugar a fórmulas prontas, o que se obtém não é transcendência, mas um refinado tipo de alienação — aquele que se disfarça de iluminação.
++++++++++
É
sutil como algumas mensagens, frequentemente espíritas, carregam, em seu núcleo, a ideia
de aniquilamento da subjetividade e a instalação de um modo de ser e pensar
padronizado — e pior: alienado do sujeito humano que a lê. Sob o pretexto de
oferecer consolo e orientação, certas palavras operam como um molde invisível,
exigindo que a singularidade se curve diante de um ideal abstrato.
Do
ponto de vista psicanalítico, o que se vê é a construção de um superego
espiritualizado, um juiz interno que, travestido de luz, dita o que se deve
sentir, pensar e até desejar. Ao invés de ampliar o espaço de elaboração
interior, esse discurso estreita-o, entregando ao indivíduo um roteiro pronto
para sua própria vida psíquica. O resultado é uma espiritualidade que não
emancipa, mas domestica. [ver Michel Foucault e Nilton Bonder][1].
Filosoficamente,
isso se traduz em uma paradoxal forma de alienação: um projeto que, ao propor a
libertação da alma, acaba por encarcerar o pensamento. O sujeito, seduzido pelo
brilho do verniz metafísico, aceita a padronização como se fosse elevação, sem
perceber que perdeu, no processo, a sua própria voz.
Ouçamos
o conselho dado por Gilberto Gil na canção “Ser diferente é normal”:
https://www.youtube.com/watch?v=C_uVy-UR_HM
Cabe
a pergunta: há semelhanças entre líderes fascistas e esses autores com seus
moldes moralistas? Arrisco dizer que sim. Em certos pontos, as afinidades são
notáveis. Toda tentativa de usar uma “fôrma” para aplicação em massa exala o
cheiro da ideologia fascista.
Adianto ao leitor: não os coloco no mesmo balaio. Falo de semelhanças sutis. Ok?
Algumas
dessas mensagens tentam condenar o que julgam ser perversão quando, na verdade,
trata-se de manifestações neurofisiológico-espirituais — e não de algo a ser
catalogado como pecado ou antinatural pela ótica moralista rígida.[2]
Não
basta laçar a subjetividade — aquilo que dá contorno à alma; é preciso, para
esses moralistas, dominar também o corpo. O sonho deles é colocar sob o
controle de suas pulsões mal resolvidas — e, por isso mesmo, recalcadas — o
pobre corpo que sofre, estrebucha e se vinga, retornando em doenças de difícil
tratamento, como as psicossomáticas.
Novamente alerto: não se trata de defender um “liberou geral anárquico”, mas de uma vivência calma, serena e elaborada diante dos apelos que, constante e naturalmente, rondam o espírito encarnado.
Mas,
se não houver um freio de contenção, isso não resultará em males imprevisíveis?
Respondo:
tão perigoso é o “freio de contenção” quanto o vício e o interesse exclusivo no
estreito gozo físico.
Vejo,
nessas mensagens, uma velada “tirania dos bonzinhos” que utiliza termos do
léxico ético para oprimir quem já vive sob opressão[3].
Em outras palavras: esse tipo de mensagem, ao prescrever um modo único de
pensar e sentir, opera como um “ideal do eu” rígido, que sufoca a
espontaneidade e a elaboração subjetiva. A consequência é o que Freud chamaria
de mal-estar cultural com verniz metafísico: o sujeito não encontra espaço para
simbolizar sua dor ou singularidade, pois já recebeu um manual de como sentir.
O
que, então, colocar no lugar das regras morais que as doutrinas nos legaram?
Recorro
a Krishnamurti e a uma de suas respostas a uma senhora que, tendo perdido o
marido muito rico, fundou uma instituição de caridade para aliviar a dor da
perda.
Ela
lhe perguntou: “O que fazer, se mesmo com a fundação indo bem, não me sinto
confortada?”
Com
seu jeito peculiar, Krishnamurti respondeu: “Deixe a instituição.”
Vemos,
portanto, que mensagenzinhas que ditam o que deve ou não ser feito, no campo
ético-moral, devem ser refletidas e pesadas na balança da consciência. Assim,
evitamos o risco de anular nossa própria maneira de ser — a subjetividade — e
de sacrificar a beleza da vida do espírito encarnado — o corpo —, onde forças
espirituais e psicológicas se entrelaçam às forças da natureza biológica,
concreta, física, numa harmonia que nenhum de nós, mortais, consegue definir.
Sem
regrinhas carcomidas pelo tempo, sem a autoridade do outro que vomita ordens —
esse outro tão cambaleante e inseguro quanto nós —, já não seremos juízes de
ninguém, nem olharemos o outro como estranho. O olhar se tornará amoroso e
fraterno. Teremos superado o fardo pesado de um profundo condicionamento
psicológico, plantado em nós e fincado fundo na alma.
Liberta
das exigências internas — esse superego tirânico —, a pessoa silencia o ruído
constante que lhe causava desconforto e insônia. Em seu lugar, nasce uma
sensibilidade desperta, capaz de perceber o que antes lhe escapava: o borbulhar
da água no preparo de um simples café; o perfume das flores, suas múltiplas
cores; o latido distante de um cão rompendo o silêncio da noite; o leve
arrastar das folhas ao vento; os trovões que anunciam a chuva; os pássaros que,
ao alvorecer, celebram um novo dia. Diante disso, ela experimenta uma alegria
serena e indizível — simplesmente por estar viva.
Mesmo
que a vida ainda imponha o preço de viver numa cidade agitada, de trânsito
denso e vagaroso, sua alma já não se inquieta. Recolhe-se numa oração sem
palavras — e nela cresce, em espírito e em verdade.
Difícil?
Quem disse que seria fácil?
Pós-escrito: Ao compor este texto, presto uma homenagem a Ubiratan Rosa, que me inspirou a escrevê-lo.
[1] Me ocorrem duas sugestões de leitura: “Vigiar e Punir” de Michel
Foucault e “A Alma imoral” de Nilton Bonder.
[2] Sugiro a leitura de Tentativas de
Aniquilamento de Subjetividades LGBTis publicado pelo Conselho Federal
de Psicologia.
[3] Termos do léxico ético referem-se às palavras e conceitos
utilizados para discutir e analisar a ética, que é o estudo dos princípios
morais que guiam o comportamento humano. Esses termos ajudam a compreender
e avaliar o que é considerado certo ou errado, bom ou mau, em relação às ações
e decisões individuais e coletivas.
Comentários
Postar um comentário