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BIGORNAS E DOUTRINA ESPÍRITA

Caro leitor/leitora, caso não queira ler essa introdução, pode pular para o primeiro parágrafo depois da divisão do texto feita com o sinal de “mais”.

Bigorna: para que serve esse equipamento?

Popular e tradicional no mundo das ferramentas, você certamente já ouviu falar sobre a bigorna, não é mesmo? Mas você sabe quais as funções e especificações desse equipamento?  

Bigorna: o que é? 

Feita em ferro forjado, aço, ou metal similar, a bigorna é um bloco maciço com grande capacidade de resistência.  

O equipamento geralmente conta com um topo plano, chamado de face, um lado plano, conhecido como calcanhar, uma ponta, chamada de chifre, além de dois furos, um quadrado e outro redondo.

A bigorna na história 

Há séculos a bigorna é usada na forja de objetos de metal. A sua versão em pedra já era utilizada durante a pré-história, já a sua versão feita em metal tem seus primeiros registros no Egito antigo. 

Antes do século XIX a ferramenta servia popularmente na produção de armas, espadas, machados, armaduras e ferraduras para cavalos.  

Após a Revolução Industrial, no entanto, o equipamento perdeu espaço para novas ferramentas criadas.  

Para que serve a bigorna? 

A bigorna torna possível a moldagem rápida do metal, esteja ele quente ou frio. O chifre da bigorna, por exemplo, é utilizado para moldar formas curvas e para fazer detalhes nas peças, já o furo quadrado serve para encaixar instrumentos de moldagem e corte, enquanto o furo redondo é capaz de fazer buracos nas peças. 

A função principal da bigorna é facilitar o esforço do ferreiro ao forjar materiais de metal. Por ser muito resistente, a bigorna é capaz de devolver parte da energia da martelada feita sobre ela, diminuindo assim o esforço necessário na moldagem

Fonte: https://www.ferramentaskennedy.com.br/blog/bigorna-para-que-serve-esse-equipamento

Origem dessa palavra, que é o Latim BICORNIS, “com duas pontas”, de BI-, “dois”, mais CORNIS, “chifre, ponta, extremidade aguçada”.

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Bem, onde quero chegar com essa conversa sobre bigornas, além de acrescentar – para algumas pessoas – um pouco de cultura inútil?

Saber qual teria de ser a longevidade de um vendedor de bigornas?

Como seria carregar 12 ou 15 amostras grátis no carro?

As visitas aos compradores deveriam ser feitas a cada 1000 ou 2000 anos?

Não, não é isso.

É o de perceber que o resultado do trabalho feito por alguém, ao longo de uma vida inteira, pode sobreviver a esse alguém por longo tempo. Quem faz uma bigorna, deve saber que ela durará muito mais que sua existência e que outros desfrutarão desse trabalho muitas vezes sem se dar conta de quem a criou e que esforços fez para sua criação.

E mais, aqueles que utilizarem aquela ferramenta ao longo de séculos – uma bigorna dura muito tempo – desenvolverá ferramentas que o seu criador jamais poderia imaginar.

Deu para pegar o gancho que fiz?

Ouvi alguém dizer que a busca por sentido passa pela busca de Deus, do transcendente, do espírito etc.

Saliento que a pessoa falava de religião e sua função em dar sentido à vida. Sim, já disse isso antes, a religião é uma grande e importante produtora de sentido. Quem não nasceu com esse órgão da fé, como no caso de Cioran[1], vai tentar buscar sentido em outras paragens.

O trabalho de Kardec em construir essa “bigorna” chamada Doutrina Espírita pela descoberta de um Universo paralelo, perdura. Contudo, devemos levar em consideração que de lá para cá, muita coisa mudou, muita gente desenvolveu teses, conceitos, inexistentes em meados do século XIX. Para que possamos valorizar o trabalho do mestre francês, temos de contextualizar o seu pensamento, temos de historicizar (colocar em contexto histórico) sua produção sem deixar de reverenciar sua obra.

De novo, por que estou eu fazendo esse rodeio?

Porque há, no meio espírita clássico, a ideia de que a doutrina espírita é uma revelação – a terceira. Essa ideia era aceita pelo próprio Kardec[2].

Como já apontado por mim neste espaço, a Natureza adora esconder-se e somos nós que temos de trabalhar duro para descobrir o que há por trás das aparências para explicar certos fenômenos observados pelos sentidos – quase sempre insuficientes.

Portanto, não foi revelado à Kardec o mundo espírita, mas o contrário, ele interessou-se pelo fenômeno das mesas girantes e investigou a ponto de construir uma teoria na qual apresentava o fenômeno espírita como algo natural, pertencente à natureza das coisas e não sobrenatural como querem os ignorantes.

Kardec usou o método científico assim como Einstein que, em sua teoria da Relatividade Geral, concluiu que a presença de um corpo faz com que o espaço e o tempo se curvem ao redor dele.

Para ambos, não foi “revelação divina”, foi trabalho duro para entender o fenômeno.

Portanto, não se trata de acreditar no espírito, para satisfazer a busca de sentido, mas a descoberta de coisas escondidas pela natureza resultante do trabalho criterioso e interessado.

Ambos não trabalhavam por “uma causa”, mas para satisfazer sua a curiosidade movida pelo espírito científico e para entender como o Universo funciona.

William Crookes (1832-1919), renomado químico britânico, fez experiências com a médium Florence Cook que resultaram no livro de sua autoria “Fatos Espíritas”. Depois de muitas sessões de materialização, Crookes declara: Não digo que isto é possível; digo: isto é real, ou seja, para Crookes não se tratava de “crença” nos espíritos, mas de verificação de provas (daí o termo "fato" no título de seu livro); de constatação. Em última análise, em evidências.[3]

Infelizmente, a mentalidade religiosa tem feito um estrago na divulgação do Espiritismo – não que esta seja de todo ruim.

Primeiro: porque baseia-se na crença e não na constatação do fenômeno.

Segundo: Pela altíssima preocupação em atuar no campo assistencialista; que não estimula grupos espíritas a construírem laboratórios e metodologia científica para investigar os fenômenos. Passei por diversos centros espíritas e não conheci nenhum que tivesse um departamento para investigação desses fenômenos. Duvido, até prova em contrário, que exista algum num raio de 4 anos-luz[4].

Terceiro: qualquer religião trabalha com dogmas e, quase sempre, esses dogmas não combinam com a evolução da Ciência, das Artes e da Filosofia.

Enquanto a Religião finca os pés em certezas necessárias para reforçar a fé e, com isso, trazer conforto ao crente (fé e incerteza não combinam muito bem); a Ciência trabalha com o princípio da falseabilidade.[5]

Assim como a bigorna, a doutrina espírita deve ser “malhada” com força pela ampliação do conhecimento promovido pela Ciência, Artes e Filosofia para que ela possa devolver parte da energia em forma de confiança àquele que se dedica ao seu estudo.

Posso estar enganado, mas são pontuais iniciativas de grupos que se debruçam sobre o fenômeno espírita, aqui no Brasil. Fora do movimento espírita temos o NUPES coordenado pelo Dr. Alexander Moreira de Almeida[6] feito dentro da Universidade Federal de Juiz de Fora.

O que esperar desse caldo, caso continue nessa toada?

Aumento da mentalidade infantil chorosa e mimada; intensificação da busca pelo metafísico e olhar enviesado da promessa divina de uma intervenção espiritual para pôr ordem na casa para “os eleitos” desfrutarem de um mundo ideal limpinho e ordenado, graças ao imenso esforço feito para recalcarem suas pulsões.

Enquanto isso, o mundo físico e imediato fica por conta dos políticos e suas promessas populistas, eleitos por aqueles que focam no mundo que ainda não veio e desprezam o mundo onde pisam.

Tá bom, vai; mas o que me diz da questão 19 de O Livro dos Espíritos?

19. Não pode o homem, pelas investigações científicas, penetrar alguns dos segredos da Natureza? - Pergunta Kardec.

A Ciência lhe foi dada para seu adiantamento em todas as coisas; ele, porém, não pode ultrapassar os limites que Deus estabeleceu.[7] – respondem os espíritos.

Peço perdão, mas a resposta obtida é de uma infantilidade flagrante.

Primeiro, porque a Ciência “não é dada” ao homem. São descobrimentos graduais, de acertos e erros a que ele tem acesso pelos instrumentos que possui às suas mãos.

Segundo, Deus não impõe limites a nada. O Universo está aí para ser descoberto. Simples assim. O deus que “impõe limites” é um deus medíocre, moralista e vigilante como diria Foucault[8]. Um deus que se opõe à ideia do Deus conceituado na primeira resposta à pergunta número um do mesmo livro: inteligência suprema do Universo e causa primeira de todas as coisas.

Como seres racionais, temos de abandonar as afirmações em voz passiva e assumir, maduramente, a responsabilidade em voz ativa[9].

Nada de proselitismo[10]. Nada de verdades absolutas. Nada de gurus que ditam o que devemos e o que não devemos fazer. Tudo por uma pedagogia e uma teologia críticas que nos dão a aguda noção de nossa insuficiência.

Deus criou a matéria; desta, surgiram as estrelas. Somos produtos do pó das estrelas[11] e temos a possiblidade cosmológica[12] de descobrir do que é feito esse pó.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Emil Cioran (1911-1995) filósofo romeno radicado na França.

[2] Ver O Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo I.

[4] Referência à distância daqui a Alfa Centauri - a estrela mais próxima da Terra, depois do Sol. Equivale a 40 trilhões de quilômetros.

[5] O filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994) desenvolveu o Princípio da Falseabilidade no qual uma teoria deve passar por testes e, a priori, deve ser considerada falsa. Quando a teoria resiste a esses testes ela poderá ser considerada comprovada.

[7] O Livro dos Espíritos, Capítulo II questão 19.

[8] Vigiar e Punir livro do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).

[9] Aqui, esbarro no pensamento de Jean-Paul Sartre, filósofo francês: 'Não importa o que a vida fez de você, importa o que você fez do que a vida fez de você. Prefácio de Saint Genet ator e mártir, Editora Vozes.

[10] Proselitismo: é a intenção de converter pessoas para aumentar o número de fiéis a uma determinada ideologia.

[11] Referência à afirmação do astrônomo americano Carl Sagan: “somos feitos de poeira das estrelas”. Sua afirmação vem da tese de que todos os elementos químicos que conhecemos foram forjados nas estrelas e na morte delas.

[12] Cosmologia: estudo da origem e da composição do Universo.

 

Comentários

  1. O texto não enseja outra coisa senão sinalizar para ensinamentos. Concordo que a Inteligência Cósmica é o que nos acostumamos a chamar de Deus, uma criação da mente humana. Neste sentido, as religiões nos impedem de pensar por nós próprios, mas segundo os seus dogmas. Reitero que só aprendo com os seus conhecimentos. Abraço.

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  2. Abrir as mentes do senso comum; talhar os pensamentos clichês; forjar as ideias reflexivas; modelar o diálogo equilibrado; cortar as doxas polêmicas; temperar a emoção são movimentos necessários a se construir um ser autônomo, criativo e bem consigo próprio. Perseveremos.

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