Ora, entre os fariseus havia um homem chamado
Nicodemos, senador dos judeus — que veio à noite ter com Jesus e lhe disse:
“Mestre, sabemos que vieste da parte de Deus para nos instruir como
um doutor, porquanto ninguém poderia fazer os milagres que fazes, se Deus não
estivesse com ele.”
Jesus lhe respondeu: “Em verdade, em verdade digo-te: Ninguém
pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.”
Disse-lhe Nicodemos: “Como pode nascer um homem já velho?
Pode tornar a entrar no ventre de sua mãe, para nascer segunda
vez?”
Retorquiu-lhe Jesus: “Em verdade, em verdade, digo-te: Se um homem não
renasce da água e do Espírito, não pode entrar no reino de Deus.
— O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do Espírito é Espírito. —
Não te admires de que eu te haja dito ser preciso que
nasças de novo. — O Espírito sopra onde quer e ouves a sua voz,
mas não sabes donde vem ele, nem para onde vai; o mesmo se dá com
todo homem que é nascido do Espírito.”
Respondeu-lhe Nicodemos: “Como pode isso fazer-se?” — Jesus lhe observou:
“Pois quê! és mestre em Israel e ignoras estas coisas? Digo-te em verdade, em
verdade, que não dizemos senão o que sabemos e que não damos testemunho senão
do que temos visto. Entretanto, não aceitas o nosso testemunho. — Mas, se não
me credes, quando vos falo das coisas da Terra, como me crereis, quando vos
fale das coisas do céu?” (S. João, 3:1 a 12.)
Allan Kardec, O
Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo IV item 5
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De todas as conversas que Jesus teve na sua passagem pela
Terra o diálogo entre ele e Nicodemos[1]
guarda uma complexidade maior.
Meu interesse por essa conversa não passa necessariamente pela
ideia de reencarnação.
Como eu já disse essa passagem contém uma complexidade que dá
margem a outras interpretações. Há quem acredite que Jesus falava da conversão[2]
do crente para que este pudesse atingir os Céus, livrando-se, com isso, das
garras do tinhoso.
Portanto, nos estudos cristãos existem uma determinada “isca
“para cada tipo de peixe.
Kardec, por exemplo, inferiu que Jesus falava a Nicodemos da
necessidade de reencarnar para atingir o “reino dos céus”, que para ele –
Kardec - significava a perfeição espiritual na qual só se pode chegar pelo
esforço próprio sem a necessidade de aderir a essa ou aquela denominação
religiosa ou a dependência de um intermediário. Não dá para negar o avanço
dessa ideia e da liberdade que se goza com essa perspectiva.
E o que você diz?
Vou por outro caminho (que pode ser interessante ou não).
Gosto de arriscar minha alma para uma eventual excomunhão e consequente danação
eterna. Contudo, não posso, nesta altura do campeonato, descartar “a aposta de Pascal”[3].
Sem rodeios, qual é ponto?
Vamos lá.
Primeiro, gostaria de comentar um detalhe interessante: Jesus
não gostava de confetes: Nicodemos chega exaltando as credenciais divinas
do Cristo e recebe uma resposta direta e reta, sem rodeios, oferece um desafio
para o velho fariseu: não adianta ser isso ou aquilo, seguir regras e leis,
cumprir determinados rituais sem conhecer-se a si mesmo.
Jesus sabia com quem falava – o texto não diz se Nicodemos
lascou uma carteirada[4],
mas o autor do evangelho fala de suas credenciais. Então o Mestre sabia da
autoridade do seu interlocutor e seu zelo rigidamente baseado na tradição à lei
Mosaica em seus mínimos detalhes. E é importante destacar: alguém que vivia
regido por regras e normas sem as quais sua vida perderia o sentido. (desculpe
a redundância).
Para que eu seja entendido é preciso voltar um pouco e
lembrar Jesus dizendo aos fariseus: o Reino de Deus não vem por aparência
exterior; o Reino de Deus está dentro de vós mesmos[5].
Dá na mesma dizer “reino de Deus” ou “reino dos Céus”;
portanto, quando Jesus fala que é preciso “nascer de novo” para entrar no
“reino dos Céus” Jesus está se referindo: 1) a uma instância interna 2) “nascer
de novo” como a desativação de crenças, costumes, valores introjetados pela
tradição.
Jesus, não por acaso, falara do “nascer de novo” a alguém
marcado pela heteronomia[6].
É nisso que reside a beleza do ensinamento do Mestre.
Então, Jesus se referia à reforma íntima?
De jeito nenhum. “Reformar” é o velho com aparência de novo.
Você gosta de complicar. Como uma pessoa que já teve inúmeras
experiências terá condições de esquecer tudo o que viveu para ceder lugar ao
que você chama de “novo”?
Não esquece. Tudo o que vivemos e experimentamos é indelével
(não se pode apagar). O que podemos fazer é desativar a ação do velho em nós,
configurado nas lembranças do que passou; ressignificar; ou outro termo que
você achar melhor.
Esse “nascer de novo” é um desafio muito maior do que o de reencarnar: posso reencarnar milhares de vezes e continuar tocando o mesmo samba de sempre. Esse insight – esse percebimento se dá no tempo, mas a ele não pertence. É atemporal. Como indica o Cristo, é interno, portanto, psicológico, subjetivo e não externo.
O desafio lançado pelo Cristo ao velho doutor da Lei – e a
todos nós – é enorme. São necessárias mudanças internas radicais para que se
possa “entrar” naquele reino a que Jesus alude. É preciso ter “espaços vazios”
para que o novo se instale. Lembra dos odres novos?[7].
Só quando se é nascido do espírito diz Jesus a Nicodemos numa linguagem esotérica da qual o velho juiz não compreendia de imediato.
Tá legal, mas como operacionalizar esse percebimento?
Não é simples. Do ponto de vista pragmático, uma boa terapia costuma
funcionar bem. Contudo, como qualquer empreendimento humano, não tem garantia
de êxito. Existem, hoje, boas opções –
não aquelas terapias de final de semana em resorts com praias exclusivas e finos
canapés que te ofereçam aquilo que você gostaria de ouvir e experimentar.
Provavelmente, Nicodemos não saiu muito satisfeito do encontro com Jesus. As
camadas do texto evangélico indicam isso.
Talvez, por isso, Espinosa tenha dito: as coisas são boas
porque as amamos e não que as amamos por serem boas.
É preciso humildade e grande atenção para alcançar algum êxito.
A ideia de que se tem a verdade por essa ou aquela filosofia ou religião; de
que se é bom; de que se é portador de grande conhecimento e capital simbólico.
É um mau caminho.
Alguém já disse: somos projetos feitos, mas não acabados.
Quer ter um ano novo verdadeiramente renovado? Pense no que
Jesus disse ao doutor da lei e siga em frente com faca nos dentes e sangue nos
olhos (amorosamente, é claro).
Difícil? Quem disse que seria fácil?
Feliz Ano Novo.
Nota: O Blog “Espiritismo
Debatido" já atingiu a marca de 12 mil visualizações. Caso você goste do que lê
aqui, peço que o divulgue e indique a fonte dos textos que achar interessante
compartilhar.
Sinto-me honrado com a sua visita e comentários, críticas e eventuais correções.
[1] Nicodemos era fariseu (fariseus eram pessoas que se dedicavam à observação e transmissão da lei ou Torá de forma oral ou escrita). Além disso, Nicodemos fazia parte do Sinédrio – uma espécie de tribunal composto por juízes que legislavam como corte suprema.
[2] Conversão pode
significar muita coisa: a aceitação pura e simples dos dogmas da igreja: a
aceitação de Cristo pelo batismo; aceitar Jesus como o libertador do pecado
original; da fé e adesão a alguma das inúmeras denominações cristãs existentes
e por aí vai...
[3] Aposta de Pascal: se acreditar em Deus e estiver certo, terei um ganho infinito; se acreditar em Deus e estiver errado, terei uma perda finita; se não acreditar em Deus e estiver certo, terei um ganho finito; se não acreditar em Deus e estiver errado, terei uma perda infinita. Blaise Pascal. Pensamentos.
[4] Carteirada:
apresentação de carteira profissional ou funcional por alguém que quer mostrar
importância ou autoridade.
[5] Lucas, 17, 20-21
[6]
Heteronomia: sujeição a uma lei
exterior ou à vontade de outrem; ausência de autonomia.
[7]
Mateus 9, 16-17: Ninguém coloca
remendo novo em roupa velha; porque o remendo força o tecido da roupa e o rasgo
aumenta. Nem se põe vinho novo em odres velhos; se o fizer, os odres
rebentarão, o vinho derramará e os odres se estragarão. Mas, põe-se vinho novo
em odres novos, e assim ambos ficam conservados”.
É muito bom olhar pelo seu ponto de vista, há coerência e ensejo de iluminar minha escuridão!
ResponderExcluirBasicamente re-vivemos ciclos. Externos e internos, na natureza e na mente.
ResponderExcluirO tempo perpassa, as atitudes re-nascem, idéias brotam repentinamente indicando novos modos de ser.
Cônscios dessa incessante atualização aristotélica nos preparemos ao excepcional de cada amanhecer.
Abrama-nos às oportunidades de re-nova-ação e abracemos a vontade de sermos originais no inédito porvir.
Vistoso novo ano a tod@s nós.