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A PRECE

 Arte: Tiago Spina (com Inteligência Artificial)


Na ODE[1] XIV,  Horácio[2] dirá ao seu interlocutor Póstumo, o seguinte:

Fogem os anos, Póstumo, apressados;

Religiosa Piedade em vão procura

Deter os passos da Velhice, e

Não lhe suspende os golpes.

Inda que intentes aplacar com sangue

De tríplice Hecatombe[3], os dias todos,

O inflexível Plutão, surdo a teus votos,

As parcas não suspende.

Já Oscar Wilde[4] avançará um pouco mais no que disse Horácio:

Os deuses quando querem nos castigar atendem as nossas preces.

Trocando em miúdos: ambos queriam dizer que sob condições normais de temperatura e pressão (mais pressão do que temperatura) a contingência e suas demandas não dão trégua para quem aqui encarnado está[5].

Um deles, diz da inutilidade em se fazer preces aos céus – Plutão não suspende o trabalho das parcas[6]; o outro, que se corre o risco de sermos atendidos – a sutileza da frase está em Wilde sugerir que somos cegos que dirigem cegos[7] como diria o Cristo. E nessa humanidade a que todos nós estamos submetidos, o Cristo sabia do que estava falando:  não sabemos muito bem o que seria apropriado ou não, para nossa experiência como espíritos na Terra. É melhor não arriscar. Se é canto de Ossanha não vá/ Que muito vai se arrepender.[8]

=======================================================

Se não pudéssemos orar, apelar para um pouquinho só de pensamento mágico, de vez em quando chorar para Deus ou outra entidade, gemer aos santos e orixás, “conversar” das nossas dores e sofrimentos, estaríamos fritos!

Não está aqui, nessa conversa com você, a possibilidade de alívio por esses mecanismos de defesa aos nossos sofrimentos físicos e psíquicos. O que está em jogo é o tamanho da eficácia deles.

Se é assim, tão árida, tão inescapável à nossa condição, o que você me diz sobre a oração do Pai Nosso ensinada por Nosso Senhor Jesus Cristo? Teria ele errado?

Boa pergunta.

Penso que não. Para isso teremos, juntos, de viajar nas camadas do texto para descobrir o que há além das palavras daquela prece. Vou responder na próxima postagem para que esta não fique muito comprida.

Enquanto isso, vai pensando no que disse o velho Horácio a Póstumo.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Poema lírico com estrofes simétricas, de caráter entusiástico. Entre os antigos gregos, composição lírica própria para ser cantada.

[2] Quinto Horácio Flaco (65 a.C.-8 a.C.), em latim Quintus Horatius Flaccus, (Venúsia, 8 de dezembro de 65 a.C. — Roma, 27 de novembro de 8 a.C.) foi um poeta lírico e satírico romano, além de filósofo. É conhecido por ser um dos maiores poetas da Roma Antiga.

[3] O poeta refere-se às oferendas feitas aos deuses pelo sacrifício de animais. No caso, três, com acréscimo da hipérbole os dias todos.

[4] Oscar Wilde (1854-1900): escritor, poeta, dramaturgo irlandês. Entre suas obras destaca-se O Retrato de Dorian Gray.

[5] Para os leitores não-espíritas “encarnado” é a condição do espírito – entidade imaterial - ocupando um corpo físico e dele não podendo fugir até que a morte os separe., exceto em caso específico via suicídio.  

[6] As parcas, na mitologia romana (moiras na mitologia grega), eram filhas de Têmis (a Lei). Divindades que controlam o destino dos mortais e determinam o curso da vida humana, decidindo questões como vida e morte, de maneira que nem Zeus poderia contestar suas decisões.

[7] Referência ao que disse Jesus no registro de Mateus 15:14 Deixai-os! Eles são guias cegos guiando cegos (...).

[8] Baden Powell, Canto de Ossanha. Ouça o conjunto vocal Ordinarius

  https://www.youtube.com/watch?v=mK0K0k5wgxk

Comentários

  1. Vou parodiar uns versos do compositor Jorge Ben Jor:

    Hoje eu vou fazer uma prece
    Pra Deus, nosso Senhor
    Pra incultura parar de golpear o meu fino país
    Que é muito lindo
    É mais que esse conflito
    E é imaturo e é gambelo
    Padecente com a dor

    Por favor, incivilidade chinfrim
    Não agrida mais
    O meu país assim

    Amem! (Leia sem o acento, e sim como verbo)

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