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MAGIA DE NATAL

 

Ao encararmos a realidade como ela é (remotamente possível, no meu entendimento), por exemplo, não mentir para a criança sobre a morte de alguém dela próximo e querido, mas fazê-lo com o cuidado necessário para evitar mais sofrimento em seu coração ainda carente de experiências.

Parêntese: Alguém já disse: hay que endurecerse, pero sin perder jamás la ternura; decerto, esse alguém, creio eu, mandava fuzilar pessoas pedindo aos executores que não perdessem a ternura ao apertar o gatilho. Contradições próprias do ser humano. Não vem ao caso.

(voltando ao assunto)

Se em questão tão grave como encarar a morte para alguém que está aprendendo a lidar com o mundo não devemos mentir, por que, então, mentir para uma criança sobre a tal realidade paralela de um papai Noel que, em seu saco de presentes, carrega uma caixa registradora? Hoje, caixas registradoras não existem mais, com o avanço tecnológico, Papai Noel do século XXI deve ter QR Code para o recebimento de PIX.

Por outro lado, como ficaria a memória de nossa infância, mesmo com a carga emocional negativa pela descoberta, em dado momento, da não-existência do papai Noel, mas que existira num período tão mágico e marcante de nossa vida?

Até hoje, ligo luzinhas multicoloridas e piscantes.  Não mais com as ilusões de outrora, mas com uma suposta racionalidade de adulto. Atavismo? Talvez. Winnicott explica[1]. Racionalidade evidentemente suspensa para que eu possa visitar aquele canto de minha história onde posso reviver o abraço daquele amigo que, todo Natal, me visitava e me abraçava com vontade e emoção[2]. Para rever minha mãezinha esforçando-se para fazer, com amor de mover Sol e estrelas[3], aqueles bolinhos de tradição italiana e preparar a mesa onde pudesse viver um pouquinho de paz e de luz como uma ilha cercada de deserto e tristezas postas pela realidade que a esperavam no dia seguinte.

Ainda sinto o cheiro do pinheirinho que perfumava a sala, que faz o meu coração ser inundado pela saudade (e de dó pelo sacrifício daquela arvorezinha tão bela[4]).

Meus olhos enchiam-se de alegria ao ver minha mãe retirar as bolas de Natal da caixa guardada por doze meses em cima do guarda-roupa. Bolas de diversos tamanhos, de brilho intenso e de cores marcantes. Para mim, era um mistério olhar para elas e ver minha imagem distorcida pela sua convexidade. Nem imaginava que Aristóteles, bem antes, falava disso para o seu filho Nicômaco[5]. Magia tão forte que minha racionalidade até hoje é nocauteada e meu coração bate mais rápido.

Obrigado mãe.

Feliz Natal.


[1] Donald Woods Winnicott pediatra e psicanalista inglês. Desenvolveu a Teoria do Amadurecimento.

[2] Lembrança do Dr. Walter Ribeiro Simões, meu grande amigo Simão.

[3] Divina Comédia de Dante Alighieri:

Às asas minhas fora empresa insana,
Se clareado a mente não me houvesse
Fulgor, que a posse da verdade aplana.

À fantasia aqui valor fenece;
Mas a vontade minha a ideias belas,
Qual roda, que ao motor pronta obedece,

Volvia o Amor, que move sol e estrelas.

[4] Sou visceralmente contra o uso de árvores vivas para esse fim.

[5] “A alma tem uma parte racional (λογον εχον), e outra parte privada de razão (αλογον). Que elas sejam distintas como as partes do corpo ou de qualquer coisa divisível, ou distintas por definição, mas inseparáveis por natureza, como o côncavo e o convexo na circunferência de um círculo.” Aristóteles, Ética a Nicômaco.

Comentários

  1. Boas lembranças iluminam e impulsionam nosso caminhar.
    Abraço
    Silvia

    ResponderExcluir
  2. Ao ler os preparativos infantis de um presépio, me reportei às minhas lembranças de pequena, reconhecendo, em algumas descrições do texto, olhares e sentimentos similares!!

    Rubem Alves em 'Presépio' cita o excerto abaixo do poeta mexicano Octavio Paz:

    "O presépio nos faz querer voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Na manjedoura, dorme uma criança. O nome dessa criança é o nosso nome."

    ResponderExcluir

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